Brasília Amapá |
Manaus

A rotina melancólica de um presidente após o afastamento

Compartilhe

BRASÍLIA — Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, após 20 meses de um governo que sacudira o país, o casal Fernando e Rosane Collor, de mãos dadas e olhar altivo, se despediu do Planalto pela porta dos fundos. Na véspera, o Senado aprovara a admissibilidade do impeachment do presidente. Assim que o helicóptero decolou, quando sobrevoava o Lago Paranoá em direção à Casa da Dinda, o presidente afastado ordenou ao major comandante que desviasse o voo para que pudesse observar uma escola de tempo integral que construíra na Vila Paranoá e que era seu orgulho. Queria se despedir com a imagem do Centro Integrado de Atendimento à Criança (CIAC). O militar, então, disse-lhe:

— Excelência, sinto muito, mas o combustível e o plano de voo que temos só nos permitem ir até o destino previsto, a Casa da Dinda.

Fernando Collor não disse coisa alguma. Mas, segundo auxiliares, ao ouvir a negativa do major, percebeu que não comandava mais nada e que jamais voltaria ao Planalto. Estava certo. Sessenta dias depois, em 2 de dezembro, o plenário do Senado aprovou o parecer da comissão especial pela procedência da acusação.

RARAS VISITAS PARA UM CAFÉ

No dia 29 de dezembro, mesmo com uma carta de renúncia lida durante a sessão, o julgamento prosseguiu, e os direitos políticos de Collor foram cassados em votação nominal, no plenário do Senado, em sessão presidida pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Sidney Sanches.

Durante esse prazo de menos de três meses entre a admissibilidade e o julgamento final no Senado, Collor e Rosane atravessaram um calvário. Isolado na Casa da Dinda, magro e deprimido, Collor se apegou à religiosidade, incluindo a realização de rituais de umbanda, na esperança de voltar ao Planalto.

O então presidente afastado, ao contrário da guerra jurídica capitaneada hoje pelo PT e aliados da presidente Dilma Rousseff, não bateu de frente contra o processo na Câmara ou no Senado. Inconformado com o afastamento, tentou, sem sucesso, manter a rotina de despachos como na Presidência da República. Aproveitou parte da estrutura da biblioteca do pai, Arnon de Mello, do outro lado da rua da Casa da Dinda, e adaptou o que ficou conhecido como “Planaltinho”.

Ali, como se fosse seu gabinete de trabalho, despachava com amigos e os poucos políticos com quem manteve contato depois do afastamento. A memória desses aliados remete a uma rotina melancólica: Collor se levantava cedo, se vestia de maneira formal, entrava no carro no banco de trás, com o motorista Luis Amorim ao volante, atravessava os 100 metros entre a casa e a construção. O motorista parava, saltava do carro, dava a volta e lhe abria a porta. Collor descia, entrava na antiga biblioteca e ia despachar no seu “Planaltinho”.

Segundo relatos de um desses visitantes, Collor sentava-se à cabeceira da mesa de madeira, com oito cadeiras, alguns papéis, blocos de anotações e agenda sobre a mesa. Cadeiras puídas, chão descascado e biblioteca empoeirada.

— Ele ligava e dizia: venha aqui tomar um café! Eu sempre fui lá. Collor naquela tristeza angustiante, sapato social sem meia, dando longas baforadas no charuto cubano, em silêncio. A gente fazia companhia no silêncio. Ele repetia que era vítima de um processo político, mas não tinha esperança de voltar. Respeitava o processo de forma resignada e respeitosa em relação a hierarquia institucional, sem judicializar como estão fazendo agora. Éramos, os poucos que íamos lá, solidários no silêncio — relembra o presidente do PTB, na época deputado, Roberto Jeferson, integrante da chamada tropa de choque de Collor.

Nessa época, como revelou Rosane Collor mais tarde, diante do abatimento e desespero de Collor, havia a preocupação que ele pudesse partir para um gesto mais extremado, e as armas existentes na casa foram escondidas. O presidente afastado deixou de correr nos arredores da Casa da Dinda, vestindo camisetas com dizeres como “o tempo é o senhor da razão”, ficou muito magro e entregou-se à melancolia.

Na tentativa de reverter a cassação, além de rezar na capela com imagens do milagreiro Frei Damião, um dos gurus durante sua campanha e mandato, Collor e Rosane participavam de rituais de magia negra no porão da Casa da Dinda, como ela revelaria anos depois em entrevista ao “Fantástico”.

Em pouco tempo, a romaria de políticos e o glamour da Presidência se esvaíram. Na solidão, quem frequentava a Casa da Dinda eram poucos amigos, como o senador cassado Luiz Estevão de Oliveira, hoje preso; o empresário Eduardo Cardoso e o ex-ministro Pedro Paulo Leoni Ramos, preso na Operação Lava-Jato, acusado de ser um dos elos de Collor com o esquema de propinas na Petrobras.

Outra visita constante era a do advogado Fernando Neves, um dos que faziam sua defesa no processo de impeachment. O primo, ministro Marco Aurélio Mello, também o visitava nessa época, a convite de Collor.

AGONIA EM FOTOS

Frequentador habitual da Casa da Dinda naquele período, o jornalista e fotógrafo Orlando Brito registrou de perto a agonia de Collor durante o afastamento. As fotos e memórias estarão em um livro que será lançado em dezembro e se chamará “De Castello a Rousseff — Vitórias e derrotas”. Brito participou da cobertura de praticamente toda a campanha meteórica do “fenômeno Collor”, o período à espera da posse e seu curto mandato, e acabou se aproximando do casal.

— Sabia que numa situação dessas todo mundo some, todo mundo evita contato. E, sobretudo, que havia imagens bem do tipo que eu buscava. Então, numa quarta-feira do tempo em que Collor estava “na geladeira”, telefonei e avisei que estava indo visitá-los. E fui. Ao chegar, encontrei a Casa da Dinda num clima de absoluta escuridão, com as luzes apagadas. A ex-primeira-dama estava sentada numa pequena poltrona lendo um livro. Disse-me que, para amenizar a solidão, se entregava à leitura. Enquanto aguardávamos a chegada do seu marido à sala principal, fiz a foto de Rosane. Para minha surpresa, o livro era “Cem anos de solidão”, do Gabriel García Márquez. Uma foto que bem expressava a intensidade daquele momento — relembra Brito.

Ele conta que no período de “freezer”, fora da Presidência, toda vez que ligava, perguntava o tradicional “como vai?”. E a resposta de Collor era sempre a mesma:

— Aqui, meu caro, lambendo as minhas feridas!


...........

Siga-nos no Google News Portal CM7