Brasília Amapá |
Manaus

‘Guerrilha poética’ toma o Municipal de São Paulo

Compartilhe

SÃO PAULO — Segunda-feira à noite. Logo após o término do espetáculo “100% São Paulo”, do coletivo alemão Rimini Protokoll, cerca de 50 artistas negros tomaram os corredores da plateia do Teatro Municipal de São Paulo e iniciaram ali a performance “Em legítima defesa”. A ação já havia sido realizada na última sexta-feira, dia de abertura da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), após o fim do show “Revolting music”, do sul-africano Neo Muyanga, no Centro Cultural São Paulo. Em ambos os casos, a ação surpreendeu parte do público, que se preparava para deixar os locais. Mas a diferença entre as duas era evidente. Além da disparidade na magnitude dos espaços, se a primeira fora devidamente programada e constava no catálogo do festival, a incursão do coletivo negro no Municipal foi decidida ao longo do fim de semana, em comum acordo entre o diretor Eugênio Lima, 15 dos performers e os organizadores da MITsp.

— Todo mundo ficou muito sensibilizado com o que aconteceu na sexta, e então o Guilherme (Marques, produtor) e o Antônio (Araújo, curador) sugeriram que repetíssemos — contou Lima. — Aceitamos, contato que fosse em um lugar emblemático da cidade.

Emblemático, segundo ele, seria algo que “simbolizasse a interdição de um espaço da cidade ao negro”, sobretudo um lugar associado a espetáculos de tradição europeia, como óperas e concertos.

— O Municipal é um emblema da cidade e também da impossibilidade de participação do negro, da invisibilidade do negro. Escolhemos o Municipal, e não à toa tivemos algumas dificuldades técnicas para realizar a performance — disse. — A maioria dos performers, por exemplo, nunca tinha pisado aqui até esta noite (de segunda). Entraram pela primeira vez nesse lugar onde aconteceu um show histórico do Miles Davis, em 1974. Ele deu as costas para o público quando percebeu que iria tocar para uma plateia só de brancos. Então, a nossa ideia era tomar de assalto um lugar emblemático, fazer uma guerrilha poética no Municipal.

Entre as cerca de mil pessoas que estavam na plateia, apenas 14 eram negras. E a contagem foi realizada pelos jovens artistas negros da performance que eram, em volume, mais numerosos do que aqueles acomodados nos assentos. Após o diagnóstico — realizado com certa dificuldade em meio à massa de cidadãos brancos e pardos —, seguiu o constrangimento e a pergunta: “E você finge que não vê?”. A questão correu sem resposta entre as fileiras, enquanto no corredor central entre as poltronas, os 16 atores do ato responderam: “Violência são plateias de teatro”. Mas a metáfora foi recurso passageiro. Durante os 35 minutos em que se deu a performance, a ideia era ir direto ao ponto: “A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras”, reverberava a letra de “Capítulo 4 versículo 3”, dos Racionais MC’s, enquanto o coletivo escancarava várias questões: “Mestiçagem e genocídio são a mesma coisa? A abolição aconteceu mesmo? Você se importa com o genocídio do negro no Brasil?”.

— O ponto é falar sobre o genocídio. É falar que ainda tem gente morrendo por ser negro no Brasil. E é falar isso para uma plateia majoritariamente branca no Municipal, sabendo que aqui é um lugar seguro, mas que todo risco ainda está do lado de fora, na rua, quando eu sair daqui e voltar para a minha casa — disse o ator Gilberto Costa, de 29 anos.

Costa, assim como outros performers, pisavam no Municipal pela primeira vez, e estavam ali para dar corpo e voz a histórias e fatos “apagados e invisibilizados pelo racismo”. E assim foi, com negros de punhos ao alto exortando palavras de ação, relembrando em alto e bom som casos de violência como o de Amarildo e outros negros mortos pela polícia, em meio a críticas e estatísticas dilacerantes sobre o genocídio da juventude negra brasileira — segundo dados que eles atribuíram à Anistia Internacional, 77% dos jovens mortos no Brasil são negros. Fragmentos literários, poemas, manifestos, entrevistas, ensaios, artigos e escritos de próprio punho: tudo foi condensado em 35 minutos de bombardeiro retórico.

— Esses atores iriam participar da obra “Exhibit B” (do sul-africano Brett Bailey), mas o trabalho foi cancelado e, entre todos os envolvidos, eles foram os únicos que não foram ouvidos. Então eles estão aqui para falar em legítima defesa de suas vidas e pontos de vistas — explicou Lima. — Não é um mero desabafo, mas uma construção artística contra a invisibilidade e o apagamento do sujeito negro no plano da História, no campo das ideias e na representatividade social, através da mídia. Se o negro está interditado nesses campos, é através da arte que a gente pode falar.

Eram negros, portanto, narrando a própria história. Assumindo as suas vivências políticas, poéticas e afetivas, e transformando-as em performance, em cena. E o mais importante: assinando a autoria dessas narrativas e formas de expressão.

— É o negro no seu direito de assumir e criar a sua narrativa, de organizar a narrativa e a cena à sua maneira. É dar voz ao negro — disse Lima.

É isso o que a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo buscou apresentar por meio desse trabalho, assim como do espetáculo “Cidade vodu”, que estreou na última segunda-feira, e também com “A carga”, que o dançarino congolês Faustin Linyekula apresenta entre quinta-feira e o encerramento da mostra, no domingo. Se “Cidade vodu” arma-se como uma narrativa histórica e contemporânea sobre a trajetória de opressão, revolta e emancipação do povo negro haitiano, e da recente onda migratória em direção ao Brasil, “A carga” narra a história de corpos marcados por abusos e violências no Congo.


...........

Siga-nos no Google News Portal CM7