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Corrida na trilha dos incas revela paisagens inexploradas por turistas

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CUSCO, Peru – Há numerosas formas de conhecer a Terra. Correr é uma das mais naturais e esquecidas. E foi a que escolhi para explorar o Vale Sagrado dos Incas, no Peru. Quando soube que aconteceria uma maratona lá, vi que a Mountain Do Vale Sagrado dos Incas, a primeira maratona realizada na região, o coração da civilização inca, era sob medida. Curiosamente, na terra em que corredores eram honrados — os venerados chasquis incas —, maratonas não são populares.

A altitude média de três mil metros dos 42 quilômetros da prova (havia versões menores, de 21K e 8K) pode intimidar quem vive no nível do mar. Há provas mais altas — a Tenzing-Hillary Everest Marathon, na base do Everest, chega a 5.545 metros —, três mil não são desprezíveis. Alguns passam mal acima de dois mil metros. É uma loteria genética que não depende da forma física. Mas não pensei que altitude fosse obstáculo. E não foi. Nada que alguns dias de adaptação não resolvessem.

Me animei com um estudo que sugeria que o treinamento no calor extremo — leia-se, acima dos corriqueiros 40 graus do verão carioca — ajudava na adaptação à altitude, por submeter o corpo a estresses celulares semelhantes. Acreditei, sobretudo, no meu treinador Ricardo Sartorato, que focou em treinos em ladeiras.

Correr para mim não é esporte. É parte da vida. Deixamos enterradas em algum lugar da mente nossas origens corredoras, as mesmas que levaram o ser humano das savanas africanas ao asfalto das metrópoles, numa jornada de milhares de anos. Mas se sacudirmos a poeira dos neurônios, elas estão lá. Prontas para oferecer uma experiência sensorial única, intensa.

A Mountain Do Vale Sagrado dos Incas teve o percurso planejado para percorrer não só trechos da lendária Trilha Inca. Incluiu o menos conhecido, porém, mais belo e desafiador trajeto ao longo do complexo sistema de canais construído pelos incas para drenar a água de chuva e degelo e irrigar plantações. São canaletas de cerca de 30 centímetros de largura, acompanhadas por caminhos mais ou menos da mesma dimensão, à beira das encostas — ou de precipícios. Às vezes, menores ou quase inexistentes.

De prêmio, uma paisagem vista por quase nenhum dos milhares de turistas que se acotovelam pelas ruas das cidades andinas de Cusco e Machu Picchu. Um lugar sem igual para apreciar o vale de onde ele é mais belo. Tanta beleza custou aos organizadores meses para obter licenciamento ambiental, sinalizar trilhas e retirar blocos de rocha que poderiam representar risco de vida. Apesar de desafiadora, uma prova assim é segura.

O Vale Sagrado dos Incas compreende o curso do Rio Urubamba, nas vizinhanças de Cusco, antiga capital inca, até Machu Picchu, onde os Andes mergulham na Amazônia. A prova aconteceu no trecho que parte de Huambutio, a 2.900 metros de altitude, serpenteia pelas encostas ao sabor dos canais. Sobe a 3.300 metros e se mantém na faixa dos três mil por trilhas e caminhos seculares. Vai até San Salvador e volta pela Trilha Inca a Huambutio.

No Vale Sagrado, o gelo dos Andes sucumbe aos trópicos e só alcança os cumes no auge do inverno. A prova, em 22 de maio, encontrou-os verde e cinza. Um corredor faz em algumas horas (eu completei em lentas e belas sete horas) o que um caminhante percorre em dias e alguém de carro em minutos. Ganha em troca um caleidoscópio não somente para os olhos, mas para todos os sentidos.

Nosso caleidoscópio de corrida tem nuances delicadas como o murmurar de nascentes e o cheiro da quinoa em flor. Poderosas como as torrentes que descem de geleiras e o vento que abre caminho entre os Andes. Brutais como o sol da alta montanha. Coloridas como as roupas das mulheres que cultivam nos terraços. Majestosas como os onipresentes Apus, as montanhas, divindades para os incas. A Terra vista de uma corrida não é o mesmo planeta da contemplação da caminhada. Ou o mundo instantâneo de snapshot, virtual e distante, do carro. É a vez do contato direto e súbito com durezas e belezas que o mundo natural tem a nos dar. Aos olhos de quem corre, sobram rochas de todos os tamanhos e formas. Brotam flores rosas, amarelas e lilases. Compartilha-se o caminho com lhamas e alpacas. Tudo chega e se vai depressa. E deixa lembranças inesquecíveis.

Modestos perto de gigantes como o Alsangate (6.333 metros), ao Sul de Cusco, os montes do Vale Sagrado são ainda assim majestosos. E colossais perto das montanhas brasileiras — não custa lembrar que nosso ponto culminante, o Pico da Neblina (AM), tem 2.995 metros.

Parte significativa da prova transcorre nos canais na encosta do Tawqa (4.039 metros). Abaixo, terraços plantados com quinoa, milho, batata. Depois, as águas geladas, verdes e rápidas do Urubamba. E, de novo, terraços e Apus. Na outra margem, vê-se o Waypun (4.200 metros) e o Pachatusan (4.842 metros), guardião do santuário do Señor de Huanca. A prova passa pelo Pumakancha (4.547 metros), cujo nome quéchua quer dizer “aquele que aprisiona o puma”. De todos, o mais importante é o Pachatusan, ainda venerado nas tradições locais.

Uma corrida lá é como Olimpíada aqui. Moradores dos vilarejos de Huambutio, Vilcabamba e San Salvador pararam para festejar os corredores.

Estudos recentes provaram que a corrida deflagra cascatas bioquímicas no cérebro. Elas estimulam o raciocínio, facilitam o aprendizado e liberam endocanabinoides. Estes são substâncias naturais que proporcionam prazer e bem-estar. E, por tantos motivos, esta foi a melhor e mais intensa forma de experimentar — e não apenas conhecer — o Vale Sagrado dos Incas.


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