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Mulheres criam clube de leitura focado em autoras

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Basta uma olhada rápida nas prateleiras para perceber: quantas são as autoras que você conhece? Ou melhor, quantos são os livros escritos por mulheres que você já leu?

Provavelmente esse número será muito menor se comparado ao de autoreshomens, e isso porque há uma grande diferença de representatividade de gênero no mercado editorial.

2014 foi o ano em que este tema foi bastante discutido.

Foi o ano em que foi publicada uma antologia que listou 101 autores contemporâneos essenciais, mas entre eles, apenas 14 eram mulheres.

Foi o ano em que a hashtag #LeiaMulheres foi criada.

Iniciado pela ilustradora e jornalista britânica Joanna Wash, o #LeiaMulheres(#ReadWomen2014) alcançou diversos países.

Aqui no Brasil, o trio de amigas Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques criou um clube de leitura inspirado no movimento. A ideia dos clubes começou com elas em São Paulo e se espalhou para 21 cidades do País, com participação livre e gratuita da comunidade.

Em entrevista ao HuffPost Brasil, as fundadoras detalham o surgimento dos clubes de leitura:

“Depois da campanha #ReadWomen, tivemos a ideia de fazer um grupo presencial para discutir literatura feita por mulheres. Começou em março de 2015, na livraria Blooks de São Paulo. Hoje são 21 cidades e 4 em implantação. Nós rechaçamos o termo ‘literatura feminina’. A literatura existe. Ela é feita por homens ou mulheres. Ela pode escrever o que ela quiser. Não existe literatura feminina porque não existe literatura masculina. Existe literatura escrita por homem, mulher, cis, trans.”
Mensalmente, o grupo se reúne para discutir o livro do mês. A escolha das obras é livre. Em São Paulo, fica a cargo das três mediadoras.

Março foi o único mês em que todos os clubes do País leram o mesmo livro para marcar o aniversário da rede e reverenciar a poeta Ana Cristina Cesar, escolhida pela Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) como homenageada.

Juliana Gomes mergulhou profundamente no universo da poeta.

“A Ana Cristina foi uma poeta polêmica. Seus poemas vão além da poesia. Ela faz uma pincelada de muitos autores. Ela é contracultura, é poeta marginal, cometeu suicídio e ficou esquecida por um tempo. Os livros estavam esgotados e agora houve um relançamento de sua obra. Ela morreu muito jovem e não teve muitas republicações. Os seus escritos são uma poesia pungente. Aqui em SP nunca tínhamos lido algo tão forte. A poesia é diferente da prosa. A Ana é tao visceral que você sente a necessidade de entrar em tudo sobre ela. Ler poesia não é fácil.”

Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, ainda, comentam sobre a escolha das obras:

“Quando finalizamos o encontro, apresentamos o próximo livro e todo mundo tem um mês para completar a leitura. O objetivo é que as escolhas sejam as mais diversas possíveis: raças, gêneros literários, países e narrativas. Mas sempre mulheres. Os encontros não são aulas nem palestras, são conversas. Queremos levantar questões sobre os livros. É uma discussão livre sobre a experiência de leitura. Em muitos casos, a narrativa tem uma relação com a vida da pessoa e ela compartilha. É bem dinâmico. Não queremos criar um elitismo cultural; pelo contrário, qualquer pessoa pode sentar e conversar — inclusive homens. Não seguimos muito as teorias literárias, podemos nos apoiar em alguns textos, mas não é esse o foco.”

Curitiba, Fortaleza, Sorocaba, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Salvador e Goiânia são algumas das cidades que fazem parte da rede. Quando iniciaram o clube, o trio de amigas não imaginava essa expansão.

“É muito gratificante ver que as pessoas têm interesse e apoiam a ideia. Elas têm outros compromissos, mas conseguem se encontrar à noite, durante a semana. A gente sabe que é difícil. Mas aí você vê que tem muitas pessoas querendo debater o livro com você, e é muito legal poder compartilhar. A gente nunca sonhou grande, foi acontecendo de maneira orgânica. Isso dá o senso de comunidade e de simplicidade. Nós fomos o fio condutor para algo muito maior. Acho que criar o buzz e gerar o desconforto com essa campanha e com os dados sobre o mercado editorial foi o nosso ganho em 2015.”

Literatura e empoderamento

Em 1929, Virginia Woolf já falava das “dificuldades materiais” que a mulher sem emancipação tinha para escrever.

Em Um Teto Todo Seu, a autora usa sua ironia para traçar um painel da presença feminina na literatura, não como personagens, mas como autoras. Nos ensaios, ela faz uma análise sobre a situação das mulheres que são impedidas de ter um espaço próprio de reflexão e como o peso do machismo e da “autorização do patriarcado” recai sobre elas.

Mas será que hoje, décadas depois, o cenário editorial mudou tanto assim?

Em 2012, Regina Dalcastagné publicou o livro Literatura brasileira contemporânea — Um território contestado.

De acordo com a sua pesquisa, 72% dos autores publicados no Brasil são homens, brancos, de classe média, moradores do Rio de Janeiro e São Paulo, professores ou jornalistas.

A análise examinou 258 obras publicadas entre 1990 e 2004 pelas maiores editoras do setor – Companhia das Letras, Rocco e Record.

O texto final do livro demonstrou em números uma tendência nada surpreendente da nossa literatura tradicional atual.

Quase três quartos dos romances publicados (72,7%) foram escritos por homens; 93,9% dos autores são brancos; o local da narrativa é a metrópole em 82,6% dos casos; o contexto de 58,9% dos romances é a redemocratização, seguido da ditadura militar (21,7%).

Além de o protagonista ser, na maior parte das vezes, representado como artista ou jornalista, os negros aparecem quase sempre como marginais e as mulheres, como donas-de-casa ou objetificadas sexualmente.

Esses números revelam uma estrutura histórica em que as desigualdades continuam persistindo.

Em novembro de 2014, a autora Luisa Geisler, conhecida após ter levado o Prêmio Sesc de Literatura aos 19 anos, com um livro escrito sob pseudônimo masculino, afirmou ao jornal fluminense O Globo que escreve “como mulher, sim”.

No contexto da fala, Luisa foi contra aos “elogios sinceros” que costuma receber: os de que escreve como um homem.

Em entrevista ao HuffPost Brasil, a escritora questionou o local ocupado por mulheres na literatura:

“Não vejo ‘um’ papel específico, até porque não vejo ‘a’ mulher. Existem muitas literaturas, muitos papéis e muitos tipos de mulheres. É difícil determinar um papel só, se é que ele existe. Mas ao mesmo tempo, ressalto que escrever é uma arte, e a mulher não deveria ter a obrigação de ‘educar sobre o feminino’, se ela assim não quiser, em sua criação. Talvez a função que eu possa indicar seja esta: é fazer a melhor arte que ela pode.”

Sobre o machismo e o empoderamento, ela refletiu:

“O mercado editorial é tão machista quanto a maioria dos meios. Acho complicado dizer ‘X é machista’, porque no Brasil o machismo é estrutural. O mercado editorial não é uma bolha machista em um país de paz, amor e igualdade. Ele reflete problemas que existem além dele.
Escrever sempre é um ato político, mesmo que a autora (ou autor) não tenha essa intenção. A criação de uma história, de um universo, tudo isso dialoga com a realidade de maneira política. No entanto, não sei se escrever é uma forma de empoderamento. Adianta escrever se não se é lida? Escrever para o vácuo seria se empoderar? Não sei dizer. Claro que escrever como mulher é um passo em direção à igualdade, mas a ideia de empoderamento é mais abrangente. Talvez o ato de escrever por si só não seja garantia de empoderamento.”

Por isso, fica a sugestão: leia mulheres.


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