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Restrito às matas,vírus mayaro ameaça se urbanizar

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RIO – O Rio Ortoire parece carregar estrelas ao cruzar as florestas do Sudeste de Trinidad e Tobago. Suas águas emitem uma luz de azul intenso, resultado da bioluminescência das algas. A região é conhecida pela beleza do fenômeno, mas ela chama a atenção de virologistas por um outro motivo: é o lugar onde o vírus mayaro foi isolado pela primeira vez, em 1954. Desde então, o mayaro se espalhou pelas florestas tropicais das Américas. É um arbovírus, como o zika e o rocio, e “parente próximo” do chicungunha. Causa surtos de uma síndrome febril cujas dores se prolongam por semanas. Casos que costumam passar despercebidos pelos moradores das grandes cidades, pois suas vítimas estão em lugares remotos do Brasil. Até agora. Para especialistas, o mayaro avança para ser o próximo vírus da floresta a se urbanizar e causar epidemias.

Transmitidos por artrópodes, como os insetos, os arbovírus são criaturas das florestas. Sua biodiversidade é tão prodigiosa quanto a das plantas e dos animais que nos encantam. Somente na Amazônia brasileira há 34 tipos de arbovírus causadores de doenças em seres humanos. O mayaro é um deles. Ele não mata, mas pode deixar suas vítimas de cama por semanas, com dores intensas nas articulações. Seus transmissores são os mosquitos silvestres Haemagogus, os mesmos que propagam a febre amarela. O vírus já é encontrado nas regiões Norte e Centro-Oeste do país.

— Sabemos que, em laboratório, ele se adapta bem ao Aedes aegypti. Fora isso, temos visto surtos em áreas próximas às cidades. O vírus está cada vez mais perto — afirma a virologista Socorro Azevedo, da Seção de Arbovirologia e Febres Hemorrágicas do Instituto Evandro Chagas da cidade de Ananindeua, no Pará.

Um desses surtos ocorreu perto do instituto, numa localidade conhecida como Santa Bárbara. O vírus foi encontrado em mais de cem pessoas. Metade delas vive em um assentamento rural, e as outras vítimas são universitários que faziam um curso ali. Em 2015, o mayaro causou surtos em Goiás, que ainda estão sendo investigados.

— O mayaro é uma espécie de primo do chicungunha. Esses vírus causam dores intensas, podem deixar sequelas sérias, como perda de mobilidade. O chicungunha é capaz de obrigar algumas pessoas a se aposentarem — destaca Socorro.

Para ela, o processo de urbanização do mayaro não traz surpresa alguma:

— São vírus emergentes. O ambiente deles muda com a entrada do homem na floresta, e eles começam a se adaptar. Buscam novos hospedeiros e meios de transmissão. Quem vive na Amazônia tem contato com esses micro-organismos há muito tempo. Mas a globalização e a urbanização mudaram o cenário em que as doenças se desenvolvem. Agora, tudo está mais rápido. A globalização alterou a dinâmica das arboviroses.

Na era dos homens, o Antropoceno, as doenças são compreendidas como um desequilíbrio ecológico. É uma mudança de paradigma, afirma Renato Pereira de Souza, diretor-técnico do Núcleo de Doenças de Transmissão Vetorial do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo:

— A globalização e o aumento da mobilidade encolheram o planeta e aumentaram o fluxo de infecções. Uma doença infecciosa é uma interação ecológica entre populações. É resultado do contato do ser humano com insetos e vírus. Como esse contato é cada vez mais frequente, temos uma corrida contra o tempo. À medida que destruímos as florestas e invadimos as casas dos vírus, eles se mudam.

E eles se mudam mesmo, para nossas casas. Vírus e insetos silvestres se tornam urbanos à medida que seu habitat é invadido e eliminado. Epidemias que causam temor nas cidades, como as de zika e dengue, surgiram em florestas.

Para pesquisadores, erradicar completamente essas doenças é algo impossível. Sempre surgirão outros vírus e mosquitos. O segredo está em manter o equilíbrio das florestas e das cidades, dizem. E nunca negligenciar a vigilância, para que surtos possam ser contidos logo no início. Mas isso é pouco feito no Brasil, adverte o virologista e caçador de vírus Luiz Eloy Pereira, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo:

— O Brasil é o país que mais isolou arbovírus no mundo. Aqui, mais do que em qualquer outro país, o preço da negligência com a vigilância é a doença.

Renato Pereira de Souza lembra que a epidemia de encefalite do rocio na década de 1970 não foi contida pelo DDT, usado em profusão, mas pelas características naturais da Serra do Mar:

— Os mosquitos se adaptam aos inseticidas que criamos para matá-los. Essas substâncias acabam por selecionar populações mais resistentes dos insetos. O grande impedimento para eles sempre será um ambiente desfavorável. No caso dos transmissores do rocio, as serras menos quentes.

Em relação ao mayaro, parece que ainda não há impedimentos para sua propagação. O clima, a urbanização dos insetos transmissores e a falta de combate ao focos conspiram a favor do vírus.

— São doenças negligenciadas que começam a ter impacto nacional em função de muitas variáveis, como o aumento da população e a invasão de florestas. É a negligência que causa doenças. O ambiente desses micro-organismos é a floresta. O homem virou um hospedeiro acidental — frisa Socorro Azevedo.

Na natureza, os hospedeiros do mayaro são macacos, incluindo os saguis, uma espécie encontrada com facilidade em muitas cidades brasileiras.

— Se você destrói a floresta, os vírus que vivem nela se adaptam. Como nós, eles não querem morrer. Então, acabam por encontrar outros insetos para se propagar e novos hospedeiros. Já há condições para a chegada do mayaro ao meio urbano. A disseminação pode ser contida, porém, com uma vigilância eficiente — observa Socorro Azevedo.

A Amazônia concentra as atenções para as arboviroses silvestres. Mas vírus emergentes existem mesmo no coração da maior metrópole da América Latina. Foi no Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste de São Paulo, que cientistas do Instituto Adolfo Lutz isolaram o vírus ilhéus. Ele foi encontrado em aves, mais precisamente num chupim e num papa-capim. Descoberto na cidade baiana que lhe dá o nome, o ilhéus também é “parente próximo” do rocio e do zika. E, como eles, está associado a casos de encefalite. O ilhéus nunca causou um surto grave da doença, e a maioria dos casos de infecção é assintomática. Mas, devido à gravidade de suas complicações, acende o sinal vermelho para virologistas.

— São casos pontuais. Na verdade, nem sabemos bem qual espécie de mosquito transmite o ilhéus. Ele já foi encontrado em Aedes, por exemplo. Por isso, manter a vigilância é essencial — afirma a pesquisadora Akemi Suzuki, do Adolfo Lutz, uma experiente caçadora de vetores de vírus.

Renato Pereira de Souza explica que o Parque Ecológico do Tietê é uma espécie de microcosmo das condições ideais para o aparecimento de vírus:

— As pessoas soltam bichos ali sem se preocupar com sua origem. O parque fica ao lado de um aeroporto, dentro da cidade, à beira de uma rodovia, é visitado por aves migratórias e abriga uma razoável fauna silvestre, como preguiças e pacas. Há cursos d’água poluídos. E tem sempre muita gente e muito mosquito, tudo que é preciso para o início de um surto. Por isso, a vigilância precisa ser redobrada.


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