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Perfil: Fundador do circo Crescer e Viver se define como ‘acrobata mental’

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RIO – Junior Perim carrega o feito de ter fundado um circo. Mas, ironicamente, nunca se arriscou nos malabares nem no trapézio. Também não é um sujeito de muita palhaçada. “Eu sou um acrobata mental”, avisa ele, dentro da sua sala no Circo Crescer e Viver, na Praça Onze. E sua primeira vez num picadeiro foi justamente sob a lona que ergueu. Isso aconteceu em 2001, em São Gonçalo, onde nasceu. Junior teve uma infância pobre, e vivia entrando e saindo de escolas por causa do trabalho. Para ajudar a família, aos 9 anos já catava caranguejo às margens da Baía de Guanabara. Levava tudo para vender em feiras. Ainda criança, foi magarefe — matador de frangos — num aviário.

Na juventude, no curso supletivo, Junior se meteu no movimento estudantil de esquerda. O engajamento político e social foi um caminho natural. Em 2000, ajudava a organizar, com ajuda de voluntários, projetos para jovens — como aulas de judô e cavaquinho — na escola de samba Porto da Pedra, mas andava insatisfeito com os resultados.

— Descobri que eles não mudavam a vida de ninguém. Queria um projeto centralizado na arte — lembra.

Foi quando reencontrou, na porta de um bar, um amigo da época da militância estudantil. Era Vinicius Daumas, que havia se tornado palhaço. Menos de um ano depois, nasceu o Crescer e Viver, que começou em São Gonçalo como um programa para crianças e adolescentes. Recebiam aulas de acrobacias de solo e aéreas, equilibrismo e manipulação de objetos. O lado empreendedor de Junior combinou com a natureza poética do velho colega. Os dois têm “um caso de amor”, brinca Vinicius, que se mantém até hoje.

— Junior caiu de paraquedas no circo. Era um devorador de livros, um pesquisador, um lunático por conhecimento. Costumo dizer que abri os portões do circo para ele, mas foi Junior que se fez um cara do circo — diz Vinicius, único ombro onde Junior chora suas dores. — Ele tem uma agressividade que é diferente de violência. É a agressividade do leão: busca sempre avançar. Junior não é de processos, mas de explosão.

Junior faz um panorama de sua trajetória numa sala que cheira a cigarro, dentro de um contêiner atrás do picadeiro. Enquanto fala, uma turma ensaia, do lado de fora, uma apresentação dedicada à história do funk. Algumas meninas dançam em pernas de pau, um adolescente dá show no trapézio e um garotinho exibe passos ao melhor estilo Michael Jackson.

TENDA OCUPA TERRENO INVADIDO

Entre goles de café, Junior lembra que o circo cruzou a Baía de Guanabara em 2003, numa parceria com o Juizado da Infância e da Adolescência. Com o governo estadual, Junior conseguiu a área onde hoje funciona a estação Cidade Nova do metrô. Às vésperas de levantar a tenda, o estado deu para trás. Em busca de um outro local, ele se deparou com um terreno na Praça Onze.

— Era um lugar usado como estacionamento que, à noite, tinha reboquistas parados, prostituição infantil e muita venda de crack. Chegamos de madrugada, pedindo licença e instalamos o circo. Foi uma invasão — revela.

Em 2009, o estado mandou o circo desocupar o terreno para construir seu Centro Integrado de Comando e Controle. Na negociação, o Crescer e Viver foi para uma área vizinha, da prefeitura. Hoje, o circo tem a cessão do espaço.

Pelo circo, já passaram cerca de dez mil crianças e adolescentes, a maioria em situação vulnerável. Eles vêm hoje da Praça Onze e do Morro de São Carlos, no Estácio. Cerca de 80% têm algum parente que está detido ou que já passou pela prisão. Com o tempo, o Crescer e Viver também passou a atuar em toda a cadeia produtiva do circo, ajudando na formação de novas companhias e artistas, no desenvolvimento de espetáculos, na elaboração de políticas públicas para a área e na organização de eventos, como o Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro, um dos mais importantes do mundo. Tudo é bancado por meio de leis de incentivo e empresas parceiras.

— Trabalhar com arte é algo que só as camadas mais abastadas entendem. Na classe popular, quem faz isso é visto como vagabundo. Houve um momento em que as crianças que estavam conosco cresceram e passaram a sofrer pressão para ajudar em casa. Ora, o circo é uma ferramenta de educação, muitos meninos adquiriram habilidades e conhecimento aqui. Por isso, passamos a desenvolver estratégias para que pudessem construir uma trajetória artística e profissional — conta Junior.

Várias das crianças que cresceram dentro da lona da Praça Onze vivem, agora, no exterior. Um menino que lavava carros em um terreno invadido, por exemplo, é trapezista em Estocolmo, na Suécia. Pai de Carolina, de 6 anos, Junior também se viu transformado pelo circo. Ele afirma que se tornou um homem feliz.

— Com o circo, passei a ser menos ressentido. Pessoas com a minha origem se ressentem de coisas que não conquistam — confessa ele, que tem 43 anos, é umbandista e um boêmio de marca maior.

Junior mora (de aluguel) em Botafogo, mas seu escritório são os bares do subúrbio. Ele pode ser visto num samba em Oswaldo Cruz ou bebendo cerveja em Olaria. A Zona Portuária também entrou no roteiro, sempre feito de transporte público. Assim como não tem casa própria, não possui carro. Mas já viajou por mais de 30 países — de Burkina Faso à França — com o Crescer e Viver, que, em junho, estreará o espetáculo “Rastros”, inspirado na experiência de seus artistas. Fora da salinha de contêiner, o barulho é cada vez mais ensurdecedor, com as crianças a todo vapor.

— Eu vivo de arte. Vivo bem com a ideia de todo dia me olhar no espelho e saber que trabalho num circo — diz.

E num circo inventado por ele.


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