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Com mudanças no calendário, funcionários têm dificuldades para quitar dívidas

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RIO — A família toda vivia da pesca, e parecia que Sirleia Couto Raimundo não ia escapar: aos 13 anos, começou a vender caranguejo pelas ruas de Alcântara, um bairro de São Gonçalo. Mas a menina, que nasceu na área de um antigo quilombo em Magé e tinha tudo para passar a vida repetindo o que tantos parentes fizeram antes dela, conseguiu mudar seu destino. Filha mais velha de uma mulher que nunca pisou numa escola, Sirleia acumulou a vida de camelô com a de estudante. Virou professora. Ganhou uma bolsa para cursar pós-graduação na França.

Mas hoje, quando abre a geladeira, num apartamento alugado na Tijuca, não enxerga suas conquistas. Vê apenas a penúria que lembra a da sua infância. Meia maçã, um molho de tomate aberto, uma alface, poucos ovos e um pote de margarina pela metade denunciam que tem sido difícil equilibrar as contas. A crise financeira do estado é também a dela.

Desde que o governo passou, em dezembro, a fazer malabarismos para honrar a folha de R$ 2 bilhões – que contempla 223.131 pessoas em atividade, 152.866 aposentados e 90.415 pensionistas -, os servidores estaduais começaram a viver também na corda bamba. Os que contavam com o pagamento da segunda parcela do 13º salário no fim do ano, para quitar dívidas acumuladas em 2015, viram as finanças desandarem após o parcelamento do vencimento em cinco vezes.

Os cerca de cem mil funcionários que optaram por pegar empréstimo bancário para ter o valor integral do 13º em mãos ganharam um pouco mais de fôlego, mas foram surpreendidos com a mudança do calendário de pagamento – o salário, antes depositado no segundo dia útil, passou para o sétimo e, depois, para o décimo. Agora, todos têm pela frente o desafio de quitar juros das contas que não conseguiram acertar na data prevista.

Com a corda no pescoço, Sirleia, professora de um Ciep, já deixou de lado o plano de saúde, mesmo com o fantasma de um AVC, que ela já teve, a atormentá-la. Viu a luz da casa que mantém em Magé ser cortada. O uniforme de cavalaria do filho, que passou em concurso para o Colégio Militar, não pôde comprar. Na quarta-feira passada, enquanto reclamava das condições de vida dos servidores numa passeata do Largo do Machado até o Palácio Guanabara, não escondia o coração partido: “Meu menino saiu da escola direto para o curso e só vai almoçar às 19h, quando chegar em casa. Não tenho como dar dinheiro para ele comer na rua”. Mas difícil mesmo, diz Sirleia, foi abrir mão da esperança:

– Sempre acreditei que a educação era transformadora. Falo isso para os meus alunos, mas dentro do meu coração não acredito mais. Estudei muito, sou a única de 11 irmãos formada. Não ganho reajuste há muito tempo, tenho quatro empréstimos. Recebo do estado pouco mais de R$ 1,5 mil, e hoje não tenho condições para nada. Contava com o 13 º salário para pagar parte dos R$ 3 mil que devo no cheque especial. Não quis pegar o empréstimo do 13º em banco, proposto pelo estado, porque, se o governador não pagar, meu nome vai ficar mais sujo ainda. Estou perdendo a esperança. Já pensei até em vender bala no metrô.

Se está difícil para Sirleia, que ainda conta com o salário de uma escola municipal em Belford Roxo, está dramático para servidores que só têm o vencimento do estado. Lotada na Secretaria de Saúde, Ana Maria Pereira do Couto tira da bolsa um leque de contas vencidas. São quatro de telefone, duas de água e uma da loja de departamentos onde ela sequer entra mais. Isso sem contar a fatura do cartão de crédito e os boletos dos dois conselhos profissionais dos quais faz parte: o de fisioterapia e o de enfermagem. Com quatro empréstimos consignados e salário de pouco mais de R$ 1,5 mil, ela diz que o dinheiro, que nunca sobrou, escasseia cada vez mais com a crise:

– Tenho que comprar até papel higiênico e água para levar para o prédio onde trabalho, na Rua México. Estaria sem luz em casa se minha filha não tivesse ajudado. Estou desesperada porque, se não quitar os R$ 400 do Conselho Regional de Fisioterapia, terei o registro cassado e não poderei sequer correr atrás de um dinheiro por fora. O governador pediu compreensão, mas pedi o mesmo a vários credores, e nenhum respondeu.

Ana já trabalha há 22 anos no estado. É do tempo em que passar em concurso público e garantir estabilidade era o sonho de muitos. Hoje, o sonho acabou. Pelo menos para a professora de artes plásticas Vanessa Saldanha.

– Não pude fazer compra de comida este mês. Minha mãe diz que nunca imaginou que eu fosse passar por essa humilhação – diz a jovem, que enfrenta ainda dificuldades para realizar outro sonho. – Fechei meu casamento em setembro do ano passado, e a festa será em agosto. Com a mudança na data de liberação dos salários, atrasei o pagamento do salão, da maquiadora. Minhas contas venciam no dia 2 e estavam em débito automático. Como o salário não chegou, entrei no negativo e estou pagando juros – diz Vanessa, que já se conformou em não seguir o ditado “quem casa quer casa”: vai morar com a mãe após trocar alianças.

Moradia é um tema sensível também para Antônio Cláudio Menezes. Professor da Faetec, que tem salários melhores do que o resto da rede estadual, ele teve que se mudar do quarto e sala que alugava no Humaitá. Não conseguiu pagar em dia. Diante da multa astronômica pelo atraso e do reajuste que estava para chegar, não viu outro jeito a não ser deixar o imóvel. Há um mês, vive de favor na Tijuca. Conseguiu negociar um parcelamento da conta de telefone com a operadora, mas teme o mês que vem.

– Já ouvi que vão parcelar o próximo salário em duas vezes. Assim não tem planejamento que aguente. Até tirei uma licença da escola para voltar ao movimento sindical. Temos que lutar para que as condições dos servidores melhorem – discursa.

O secretário de Fazenda, Júlio Bueno, diz que as agruras pelas quais os servidores estão passando incomodam a todos, mas que só não pegou o 13º salário emprestado no banco quem não quis.

– O estado vai arcar com toda a responsabilidade – afirma o secretário.

Ele diz que a luta para conseguir receitas extraordinárias prossegue:

– O problema é que nem sempre conseguimos as receitas extraordinárias no tempo que as despesas pedem. O estado tem um déficit de R$ 19 bilhões e, na economia brasileira, não se sabe o que vai acontecer no mês seguinte. Você quer me perguntar se eu asseguro o próximo pagamento em dia. Mas, para responder isso com segurança, eu precisaria ter todo o valor dos salários em caixa hoje, e estou longe disso. Não somos só nós que estamos assim. O Rio Grande do Sul está em situação pior do que a gente.


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