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Cofundadora do Império Serrano grava em um estúdio suas próprias canções

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Quando era criança e não podia participar das rodas de jongo, Maria de Lourdes Mendes ficava espiando a festa por um buraquinho no estuque da casa da Vovó Maria Joana, famosa mãe de santo da Serrinha. A menina, os irmãos e os pais, Francisco José e Etelvina, moravam bem em frente, e as duas famílias mantinham fortes laços de amizade. Ela também recorda as canções que sua mãe aprendeu nos tempos em que viveu em uma fazenda. Mineira de Pirapetinga, Etelvina veio para o Rio em 1910, sendo que até os 9 anos de idade viveu sob o regime escravista. Mais tarde, seu endereço na Serrinha virou sinônimo de festa: lá nasceu o Império Serrano.

Maria participou do encontro familiar, na casa de sua irmã Eulália, que selou a criação da verde e branca, em 1947. Aos 95 anos, chamada por todos de Tia Maria, ela entremeia essas histórias com músicas do passado, todas cantadas com a voz firme e segura e sem titubear nos versos. Muitas dessas letras, algumas com mais de cem anos, estão anotadas num caderninho. De cabeça, diz saber “91 partidos-altos”.

Tia Maria vive sozinha em uma casa de dois andares na Rua Doutor Joviniano. Integrante do grupo que fundou o Império, ela é a presidente da ONG Centro Cultural Jongo da Serrinha, cuja sede foi inaugurada no fim de 2015. Tia Maria é quem abre as rodas, dançando e cantando pontos.

sempre cercada de crianças

A festeira Tia Maria costuma passar dias inteiros na ONG com crianças que fazem aulas de dança, canto, percussão, capoeira, violão e cavaquinho (e que não perdem a chance de lhe pedir para preparar um delicioso manjar). Sua participação ativa na preservação do jongo se deve muito a Mestre Darcy, filho de Vovó Maria Joana.

— Criança não podia dançar jongo. Um dia, Vovó Maria Joana chamou o Darcy: “Meu filho, você tem que botar as crianças para dançar jongo. Senão o jongo vai acabar”. Eu estava casada, e meus filhos eram rapazes. Nós ficamos dançando com as crianças. Primeiro, na casa dele; depois, na minha. Darcy ainda falava: “Vamos para a Lapa!”. A gente colocava o tambor nas costas e ia. O bar enchia. Hoje, o jongo está até nas faculdades, ficou chique — diz.

Bem humorada, ela não nega: sempre foi uma farrista. Mas começou na labuta aos 11 anos, trabalhando numa casa de família da Serrinha. Aos 19, iniciou o namoro com Ivan, com quem iria se casar. Ele foi até a casa de Etelvina para comunicar que estavam juntos.

— Satisfeita, minha mãe me falou: “Estou sabendo do namoro com o Ivan. Ele não é bagunceiro que nem você e seus irmãos, não”. Lá em casa, tudo era motivo de festa. Tanto que o Império nasceu lá — conta Tia Maria. — Já namorando, fui para os blocos de sujo de Madureira. Ele soube e foi para o botequim beber e chorar.

Coordenadora executiva da ONG, Dyonne Boy diz que há problemas na Serrinha que só Tia Maria consegue resolver. Com a fundação da Casa do Jongo foi assim: a ideia de transformar um imóvel abandonado em centro cultural foi dela.

— Tia Maria vem de uma família de empreendedores culturais. Isso quando não havia política pública para a periferia. Eles conquistaram muitas coisas para a Serrinha, como água encanada, calçamento. Seu pai era articulado. E criaram uma escola de samba do zero — destaca Dyonne.

Católica praticante, frequentadora da Capela de Santo Antônio, Tia Maria teve dois filhos: Ivan (já falecido) e Ivo, técnico em química aposentado, de 71 anos. Ela ganhou um casal de netos, filhos de Ivo, e quatro bisnetas.

Tia Maria cresceu ouvindo histórias do tempo da escravidão. À noite, em sua casa, a avó paterna, Maria Delfina, costumava contar que as moças bonitas eram levadas para a rede do senhor. Os filhos com o fazendeiro podiam ser mortos pela sinhá, vendidos para outras fazendas ou virar “criados claros”.

— Minha avó dançava o jongo, e o senhor deixava. Ele achava que na hora da umbigada tinha namoro, vindo mais escravos — recorda.

Ela, que fará 96 anos em 31 de dezembro, tem uma agenda cheia na Serrinha. Mas, no momento, passa uma temporada em Bangu, na casa do filho, por causa de uma dor no nervo ciático. Só que está ansiosa: quer voltar para casa. Um dos compromissos que precisou interromper é a gravação de músicas antigas e composições próprias no estúdio da Casa do Jongo. Uma de suas canções diz: “Cheguei/Não posso ficar aqui/Cheguei, eu tenho que seguir/Eu vou pra Madureira sambar/Que a rapaziada está a me esperar.”

Madureira e, claro, a Serrinha não veem a hora de ter a Tia Maria de volta.


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