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Lava-Jato e Zelotes devem levar a nova relação entre empresas e Estado

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BRASÍLIA – Quando recebeu um envelope com a logomarca da Camargo Corrêa, no começo do ano, um antigo lobista de Brasília surpreendeu-se com o conteúdo: era uma carta em que, de forma sucinta, a construtora comunicava que havia fechado um acordo de leniência com o Ministério Público Federal (MPF) e perguntava: “Você sabe de alguma irregularidade cometida em nome da empresa?” Junto, um pedido para que qualquer erro fosse comunicado.

Citado em 2009 na Operação Castelo de Areia, que investigou a empreiteira, este lobista foi um das dezenas de ex-funcionários aos quais Camargo escreveu, na tentativa de cumprir uma cláusula pétrea do acordo que fechou com o MPF: confessar todas as fraudes que algum dia cometeu como pessoa jurídica. Tão importante quanto o ressarcimento de R$ 700 milhões pelos crimes no petrolão, a investigação interna da Camargo Corrêa é só um exemplo de uma série de movimentos a que as empresas estão sendo forçadas pelas operações Lava-Jato, que investiga casos de corrupção na Petrobras, e Zelotes, sobre fraudes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que julga recursos contra multas da Receita. A Andrade Gutierrez, que fechou um acordo semelhante com o MPF, terá de fazer o mesmo.

‘ELITE EMPRESARIAL GOSTA DE CONTROLAR MERCADO’

Afinal, não haveria petrolão nem fraude fiscal se, do outro lado do balcão de diretores da Petrobras e de conselheiros do Carf, não houvesse empresários dispostos a pagar polpudas propinas e receber vantagens. Na lógica torta do capitalismo de Estado brasileiro, a grande maioria só empreende se for levado pelas mãos do Estado — nem sempre mãos limpas. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, lembra que a relação promíscua entre empresários e representantes do Estado é histórica:

— O empreendedor brasileiro não cresce apesar do Estado, como eles gostam de dizer. Cresce à margem do Estado, sugando o Estado.

Na mesma linha, no começo de abril, o presidente do Sebrae, Guilherme Afif Domingos, criticou o setor privado brasileiro, no Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, para uma plateia de executivos:

— O empresariado brasileiro, em sua elite, quer o controle do Estado. A elite empresarial brasileira não gosta do regime de mercado. Gosta de controlar o mercado.

A crítica de Afif Domingos faz sentido ao se analisar o modelo exposto pela Lava-Jato. Segundo Janot, não havia hierarquia na organização criminosa que fraudou a Petrobras. O chamado núcleo financeiro (empreiteiras) e o núcleo político (deputados, senadores, ministros) atuavam em uma convergência de interesses.

— Havia uma simbiose entre políticos e empresários, em que você tem mais poder para ter mais dinheiro e mais dinheiro para ter mais poder. É como o dilema do ovo e da galinha. O poder político não se curvava ao capital e nem o capital se curvava ao poder político, como querem fazer parecer. A ação conjunta controlava o mercado de acordo com interesses convergentes — explica Janot.

A Lava-Jato catalisou um processo que já vinha em curso desde a sanção da Lei de Combate à Corrupção, em agosto de 2013. Uma pesquisa inédita da Confederação Nacional da Indústria (CNI), concluída no começo do ano, com 50 grandes empresas, mostrou que 38% delas tiveram de aperfeiçoar seus códigos de ética por causa da lei.

A própria Camargo Corrêa foi obrigada, após o acordo com o MPF, a fazer um programa de compliance. Flávio Rímoli, vice-presidente de governança corporativa da construtora, chegou ao cargo em junho de 2015, um mês antes de a empreiteira fechar com os procuradores. Rímoli criou um canal interno de denúncia de irregularidades que, só em 2015, atraiu 1.600 chamadas, sendo 10% sobre desvios éticos, como fraudes e extorsões. Empresas de investigação externas foram contratadas, e 32 agentes de compliance foram distribuídos pela empresa, inclusive nos consórcios que a Camargo Corrêa integra ou lidera.

— Mostramos que não é algo para inglês ver e que quem não está de acordo vai sair — diz Rímoli.

Nem todas as empresas prosperam na tentativa. No fim de abril, a Controladoria-Geral da União (CGU) tornou inidônea a Mendes Júnior, envolvida na Lava-Jato. Luiz Navarro, ex-ministro-chefe da CGU, diz que há resistência por parte das empresas que negociam acordos de leniência em corrigir os erros do passado e demonstrar que estes não vão se repetir no futuro:

— Há empresa que acha que qualquer investigaçãozinha furreca vai resolver. Não é assim. O ideal é que a Lava-Jato mostre aos empresários que amanhã ou depois eles podem ir parar na cadeia se fraudarem.

Prova disso é a baixa adesão ao selo Empresa Pró-Ética, criado pela CGU para atestar que uma empresa está empenhada no combate à corrupção. Das 97 empresas que se inscreveram para a edição de 2015, apenas 19 o receberam. A maioria, multinacionais.

’NÃO DÁ PARA CONTINUAR COMO ESTÁ’

Não à toa. No exterior, além das diferenças históricas, a relação entre Estado e setor privado vem sendo aprimorada há décadas. Nos Estados Unidos, a lei de combate à corrupção, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), foi sancionada em 1977 — 36 anos antes da brasileira. O texto inclui o combate à propina e a irregularidades em registros contábeis, mesmo que sejam simples imprecisões nas prestações de contas para a Security and Exchange Commission (SEC), órgão que regula os mercados de capitais nos EUA.

No Brasil, a defesa da concorrência, outro pilar do livre mercado prejudicado pela relação promíscua de empresas e Estado, está mais avançada do que a responsabilização jurídica de empresas corruptas, mas também tem enfrentado problemas. E convive com casos de reincidência. Vinícius Marques de Carvalho, presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), acredita ser necessário mexer em toda a governança corporativa para mudar:

— Não adianta ter compliance sem que toda a estrutura de governança não seja transparente. Não pode ser só uma onda. O conceito de transparência deve perpassar toda a empresa.

Fora do mundo da Lava-Jato e da Zelotes, a expectativa é alta. Para o presidente da Renner, José Galló, as fraturas expostas tornam as mudanças inevitáveis.

— Não dá para continuar como está. É fundamental uma consciência dos empresários de que algo precisa ser feito e que não são essas práticas que vão fazer do Brasil um país desenvolvido — defende Galló. — Prefiro ser otimista.


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