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Roma denuncia sistema de apadrinhamento em habitação pública

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ROMA — Em 2004, Elio Ciampanella foi despejado do apartamento em que vivia há três décadas. Ele achou onde morar trabalhando como cuidador de uma criança deficiente e dormindo na casa do paciente, mas mesmo assim queria ter um lugar para chamar de seu. Assim, se candidatou a um apartamento no sistema habitacional público de Roma. E esperou. Mais de uma década se passou.

Então, em fevereiro, um apartamento no bairro Testaccio finalmente ficou disponível. Na verdade, Ciampanella, de 75 anos, inesperadamente pôde escolher entre vários apartamentos. Sua história poderia ser a da paciência recompensada, mas havia um porém: nunca faltaram casas para a prefeitura romana.

Pelo contrário, o governo possuía tantos milhares de apartamentos e prédios que ninguém sabia ao certo qual era o total, quem morava neles nem onde se localizavam. Foi assim até que membros da equipe do novo prefeito interino de Roma, Francesco Paolo Tronca, descobriram nove caixas contendo aproximadamente 1.200 pastas de arquivo esquecidas pelos administradores anteriores.

Rapidamente ficou claro que a maioria dos apartamentos estava alugada há anos — décadas em alguns casos — por valores de até dez euros mensais.

Alguns dos contratos de pai para filho eram para instituições de caridade, centros esportivos ou embaixadas. Outros apartamentos deveriam ser destinados a inquilinos de baixa renda, mas foram distribuídos pelas administrações passadas em um sistema de apadrinhamento político que recompensava eleitores de trabalhadores da cidade, sindicalistas ou apenas conhecidos.

— Você sabe como são os italianos. Se existe lei, tentamos dar um jeito de driblá-la — brincou Ciampanella enquanto mostrava seu apartamento.

Roma é a Cidade Eterna, cheia de luz perfeita, tomada por belezas de tirar o fôlego. Já em termos de administração cívica, há muito tempo ela é vista como uma bagunça descontrolada. O caso da Máfia Capitale revelou como o crime organizado se infiltrou em tudo, de contratos para a coleta de lixo a abrigos para migrantes.

Sem ligação com esse escândalo, Ignazio Marino, prefeito de centro-esquerda, cirurgião nascido na Itália e formado nos Estados Unidos, que ganhou a eleição em 2013 com uma campanha atípica, renunciou em outubro em meio ao clamor público por serviços atrasados e irregularidades na prestação de contas.

O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, designou um administrador para governar a cidade até os eleitores escolherem um novo prefeito em junho. Num golpe contra a classe política romana, Renzi achou seu homem em Milão – a capital empresarial italiana, conhecida pela melhor administração.

Entra em cena Tronca, siciliano taciturno que levou o crédito como um dos responsáveis pelo funcionamento tranquilo da Feira Mundial no ano passado em Milão.

Em Roma, Tronca herdou o elegante escritório do prefeito, cuja sacada tem vista para as ruínas do Fórum Romano. Contudo ele era considerado uma figura simbólica, diante da curta duração de seu mandato.

REVISÃO DE CONTRATOS

Mas ao contrário, ele abalou as coisas. Após a descoberta dos arquivos de habitação, uma equipe técnica interdepartamental começou a tentar entender sob quais contratos a cidade alugou os prédios, quem os estava utilizando e quanto era pago.

Por fim, a equipe de Tronca concluiu que a prefeitura era dona de mais de 500 apartamentos e prédios no centro histórico que precisavam ser avaliados. Na cidade como um todo, a cifra deve atingir a casa dos milhares.

Aparentemente, a Soberana Ordem de Malta, um grupo de caridade, desfrutou do contrato mais confortável, alugando um prédio antigo com vista para o Fórum de Trajano pela mera quantia de um euro por mês.

Mauro Casinghini, diretor do grupo italiano, que ajuda a resgatar migrantes, disse que a prefeitura assinou um contrato por essa quantia após a II Guerra Mundial. Ele contou que os fascistas de Benito Mussolini confiscaram a propriedade na década de 1930 e que o contrato de aluguel era um reconhecimento de que a propriedade pertencia por direito à ordem de caridade.

— Eles decidiram devolver para nós — declarou Casinghini, observando que a manutenção anual poderia chegar aos 25 mil euros.

Stefano Guidoni, fotógrafo, mora com a esposa, filho e mãe viúva em um apartamento pequeno perto do Coliseu que o pai recebeu há quase 40 anos. O pai era mecânico e consertava os veículos da prefeitura, e o apartamento fazia parte de sua remuneração. Hoje em dia, a família paga cerca de 140 euros mensais.

— O problema não são as pessoas que moram aqui. O problema é a administração. Eles lhe dão um apartamento e se esquecem de você. Depois, acordam e provocam todo esse fuzuê — disse Guidoni.

Pelo menos uma pessoa está contente que o sistema tenha sido desmascarado. Ciampanella disse que seu novo bairro era uma incubadora de torcedores do time de futebol do Roma. O cuidador disse que nem sequer precisava ver a partida porque toda vez que a equipe marcava um gol, ele ouvia os gritos ecoando pelas ruas.

— Quando o Roma marca um gol, mesmo que você esteja dormindo, fica sabendo — garantiu ele.

E acrescentou dizendo que isso não o incomodava. Ele está muito feliz com a casa nova.

— Todo aquele sofrimento terminou valendo a pena no fim das contas.


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