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Por que os refugiados não devem ser moeda de troca

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TALGARTH, PAÍS DE GALES — Em março, a União Europeia e a Turquia selaram um acordo: o país construiria campos para abrigar os refugiados que foram barrados na Europa e o bloco pagaria por eles — três bilhões de euros (cerca de R$ 12 bilhões) logo de cara, com outros três a seguir. Outras nações observaram o pacto de perto e agora estamos começando a ver as consequências.

No dia três de maio, Níger, país da África Ocidental, exigiu 1,1 bilhão de euros (aproximadamente R$ 4,37 bilhões) da União Europeia para impedir que seus imigrantes seguissem para a Líbia e, de lá, para o Mediterrâneo. Na semana passada, o governo do Quênia anunciou que planeja fechar o maior campo de refugiados do mundo, Dadaab. O país usa o exemplo europeu de rejeitar os sírios como base para justificar o plano de retornar quase 600 mil somalis à sua nação de origem.

Karanja Kibicho, membro do governo queniano responsável por contraterrorismo, declarou, explicitamente, a um jornal britânico:

— Não podemos mais permitir que nosso povo arque com o peso da falta de comprometimento da comunidade internacional para com os refugiados — disse, antes de citar também uma queda na ajuda internacional voluntária aos campos quenianos em favor do aumento do orçamento no Hemisfério Norte, para os refugiados que seguiram para o Ocidente.

Os campos de refugiados sofrem de uma falta de verba crônica, mas a proposta do Quênia não diz respeito às necessidades de quem os habita; parece mais uma exigência de pagamento de resgate. Seu governo já ameaçou fechar os acampamentos duas vezes, alegando questões de segurança depois dos ataques terroristas ao shopping center Westgate, em Nairóbi, em 2013, e à Universidade Garissa, em 2015. A resposta do Secretário de Estado John Kerry foi prometer US$ 45 milhões (R$ 157 milhões) em ajuda extra – ajuda essa que provavelmente não chegará nem perto dos campos, bancados integralmente pelas Nações Unidas.

Por ter feito ameaças antes, o país tem que se esforçar muito mais para conseguir atenção da comunidade internacional; para provar que fala sério, na semana passada desativou o Departamento de Questões dos Refugiados e revogou o status automático para os somalis que pediram asilo. Isso significa que quem chegar nas próximas levas não terá documentos garantidos e corre o risco de deportação imediata. O Quênia também culpa constantemente os refugiados pelo terrorismo, mesmo sem provas que liguem os campos aos ataques.

A verdade é ainda mais cínica: descobriu-se, no ano passado, que as forças quenianas que invadiram a Somália para combater o Shabab, grupo extremista afiliado à Al-Qaeda, estava colaborando com o próprio grupo para contrabandear carvão e açúcar, garantindo um faturamento de até US$ 400 milhões. Em resposta, o governo somali aprovou uma moção pedindo a retirada das tropas quenianas de seu território. Partir para a ofensiva contra os refugiados significa que a energia internacional se concentrará em convencer o Quênia a não fechar os campos em vez de exigir uma mudança de comportamento na Somália.

Considerando-se o cenário do acordo turco, os refugiados dão muito poder de barganha para as nações: represtentam proteção contra a crítica estrangeira, são fáceis de se acusar pelos problemas domésticos, e são também moeda de troca para favores especiais no exterior. Em sua tentativa baixa de se esquivar das obrigações internacionais, a União Europeia começou uma guerra de lances e exigências.

Isso é perigoso. Oitenta por cento dos desalojados do mundo são abrigados em países em desenvolvimento. O mundo está se encaminhando para uma situação na qual os direitos dos refugiados são enumerados não em leis e tratados internacionais, mas em dólares e euros. No início deste mês, a União Europeia decidiu mudar sua política de garantia de asilo, que assegurava aos Estados-membros o direito de recusa da cota de refugiados que lhe cabe, remanejada dos países a que chegam primeiro, como Grécia e Itália. A mudança foi ocorreu após uma “contribuição solidária” de 250 mil euros (cerca de R$ 992 mil) por cabeça aos países.

A decisão é insana por vários motivos, mas principalmente porque, ao não aceitar um refugiado, o país está se recusando a admitir um ser humano com capacidade de trabalho que vai, como mostra a grande maioria dos estudos econômicos, fazer uma contribuição positiva ao crescimento econômico em longo prazo. Essa foi, em parte, a base do argumento da chanceler alemã Angela Merkel para aceitar tamanho influxo de estrangeiros na Alemanha em 2015.

Na mesma linha, David Miliband, diretor do Comitê Internacional de Resgate e ex-Secretário de Relações Exteriores britânico, pediu, no sábado, a criação de uma iniciativa internacional para assentar os refugiados mais vulneráveis nos países ricos e aceitar os restantes como residentes produtivos com o direito de trabalhar nos países em que foram acolhidos.

É uma ideia sensata. Como aconteceu com os 400 mil moradores de Dadaab, os refugiados sempre constroem economias e comunidades. Apesar das tentativas do Quênia de manter o campo como local temporário, proibindo a implantação de estruturas permanentes, ruas, sistema de esgoto e eletricidade, ele se tornou uma cidade. Impedir sua permanência é desperdiçar verba internacional e abdicar da arrecadação fiscal e do potencial de talento: a ONU pagou para educar três gerações de pessoas que estão proibidas de trabalhar.

A escolha dos países acolhedores, portanto, é uma escolha entre economias formais e informais. Com um pouquinho mais de visão, os 25 anos de fundos humanitários aplicados em Dadaab poderiam ter sido gastos no investimento em uma cidade e uma população com potencial para, eventualmente, empregar refugiados e quenianos, contribuindo com milhões em impostos e abrindo um caminho para a Somália conquistar a paz e o desenvolvimento.

Apesar do bom senso óbvio da proposta de Miliband, a distância entre uma visão global generosa como essa e a dura realidade da política xenófoba que vai de Nairóbi a New Hampshire é imensa. Dadaab sobrevive como uma favela isolada justamente porque o Quênia não quer que o número de somalis chegue a um milhão, o equivalente a dois por cento de sua população.

A impressão é a de que a maioria dos países prefere deportar contribuintes em potencial e pagar multas pesadíssimas, negando-se a crescer economicamente. A Cúpula Humanitária Mundial, conferência patrocinada pela ONU que será realizada ainda este mês, em Istambul, é uma oportunidade para voltar a discussão mundial sobre refugiados para o potencial benefício de todos. Temo, porém, que a ocasião se transforme em um simples leilão.


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