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‘O mundo hoje está mais dividido do que nunca’, diz Žižek

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No livro “O sujeito incômodo” (Boitempo), que está sendo relançado agora, Žižek exorta uma reformulação de um projeto de esquerda em uma era pautada pelo capitalismo global e o multiculturalismo. Em entrevista ao GLOBO, por telefone, o filósofo comenta os impactos da nova ordem global, como a divisão cada vez maior em todo o mundo e a crise de refugiados, mas diz não ser pessimista com fenômenos como a ascensão de Donald Trump ou da extrema-direita na Europa. “Podem dar vida a novos autoritarismos, mas são também um sinal de mudança”, diz.

Acabamos de assistir ao Brexit. O senhor acha que a União Europeia está em risco?

Absolutamente, mas essa é uma situação muito complexa. Não tenho como apoiar o Brexit, mas muitos europeus, inclusive da extrema-esquerda, defenderam a saída do Reino Unido da União Europeia porque acreditam que é a única maneira de protestar contra este instrumento tecnocrata do capital que ela se transformou. Dizem que a única maneira de proteger suas conquistas, seu bem-estar social é manter Estados fortes e soberanos. Eu discordo totalmente disso.

Por quê?

Primeiro e precisamente, porque o capitalismo é global. Nações menores e independentes não conseguirão se proteger. Há alguns anos, existia um conflito entre a União Europeia e o Reino Unido porque a UE queria impor padrões mínimos para proteger os trabalhadores; e o Reino Unido resistia, afirmando que isso afetava sua capacidade de competir. Ou seja, queriam mais liberdade para explorar trabalhadores. Acontece o mesmo agora com a questão de refugiados. A UE, sob domínio da Alemanha, é muito mais aberta do que muitos países que resistem a recebê-los, como, tenho vergonha de dizer, o meu país (a Eslovênia), a Croácia e todos os ex-comunistas.

O Brexit não resolve os problemas da UE?

O principal argumento para o Brexit foi que, se o Reino Unido continuasse no bloco, seria obrigado a aceitar refugiados. Eu não tenho simpatia pelo Brexit, mas não acho que seja uma catástrofe, tampouco é um progresso. Eu entendo a raiva daqueles que votaram pela saída, concordo que algo esteja errado com a UE, mas não acho que a solução que eles adotaram seja melhor. Talvez seja pior. O Brexit foi para mim uma pseudo escolha, não acho que tenha sido uma solução positiva para os erros da UE. Nada do que está errado deve mudar, será uma negociação sem fim, mas a Europa vai continuar no mesmo lugar.

Uma Europa extremista, com políticos como Marine Le Pen ou Nigel Farage no poder, continuaria a ser a Europa?

Não. Acho que o verdadeiro perigo para a Europa é a perda de seu legado de conquistas, como igualdade, os direitos das mulheres, o bem-estar social. Eles são os verdadeiros ameaçados. O que é triste, e isso não é algo muito popular a se dizer, é que o grande apoio a estes políticos vem de operários descontentes. Veja o Brexit. Foram eles quem decidiram pela saída. Essa é uma combinação muito perigosa. A fórmula simples do fascismo é essa, você tem a classe operária descontente, que sente raiva, se vê impotente e seu nacionalismo raivoso aumenta. Se essa raiva não for transformada em uma nova visão política, vira cada vez mais uma raiva cega.

No seu livro o senhor diz que a globalização é a principal causa da atual crise migratória. Por quê?

Eu falo da maneira como o capitalismo global tornou nosso mundo cada vez mais dividido entre os que estão dentro da área protegida e os que estão fora e querem entrar. O mundo hoje talvez esteja mais dividido do que nunca. Falamos apenas da crise na Europa, mas não esqueçamos do fenômeno global. Se você olhar de perto a crise de refugiados, vemos que parte dela é o resultado do que chamo de neocolonialismo econômico. São grandes potências que neocolonizaram economicamente países africanos como Congo e outros da África Central. A desintegração da economia faz com que eles tentem escapar. Por outro lado, há a guerra em países como Líbia, Iraque, Síria, que é a grande causa da crise de refugiados. E claro, o Ocidente é responsável. Porque simplesmente não existiria o EI sem a ocupação americana no Iraque.

Existe alguma solução para esta crise?

Acho que há coisas em curto prazo que poderiam ser feitas de maneira mais organizada. Muitas pessoas comuns têm medo de cruzar as fronteiras porque temem ser vítimas de racismo e é um escândalo que isso aconteça desta forma. A Europa poderia recebê-los de maneira muito mais organizada, não opressora e isso ajudaria a trazer mais refugiados. Até mesmo usando o Exército, não para combater ou controlar, mas para trazê-los de maneira organizada. A forma como isso acontece agora, sem o Exército, é muito pior, é um pesadelo. De acordo com estimativas oficiais, o contrabando de pessoas da Turquia para a Grécia rende de US$ 7 a 8 bilhões. Todo o processo é caótico.

Como explicar o fenômeno Donald Trump nos EUA?

O que faz Trump possível é o fato de que a ideologia dominante não funciona mais. Não podemos mais controlar e regular a população. As pessoas se rebelam contra isso. Todo o processo democrático, que normalmente é baseado em um padrão de mecanismos que define como a democracia funciona, está se desintegrando. E isso se reflete tanto na parte republicana, com Donald Trump, quanto na democrata, com Bernie Sanders (pré-candidato que perdeu a nomeação para Hillary Clinton). A mesma raiva que fez nascer Donald Trump também deu vida a Bernie Sanders. E eu acho que esse é um mecanismo perigoso, que leva a uma crise política, pode dar vida a novos autoritarismos, mas é também um sinal de mudança, para algo novo. É uma situação em aberto. Mas não sou pessimista, cito meu amigo Mao-Tsé Tung: “Se tudo sob o céu está em caos absoluto; então a situação é excelente”.

Qual o segredo de Trump?

Mesmo que rejeite Trump, acho que ele é um fenômeno interessante. Algumas vezes ele até diz coisas que são mais racionais que a elite do partido. E em muitas nem sabemos o que ele defende, quais são suas propostas políticas específicas. O grande segredo de Trump é que ele é um americano típico tradicional de centro. E para esconder isso, ele se faz de palhaço, se excede. Eu tinha muito mais medo de outros pré-candidatos, como Ted Cruz. Ele era o verdadeiro pesadelo, não Trump.

Como o senhor vê o aumento de ataques por lobos solitários, como o da semana passada na Turquia ou o da boate gay em Orlando?

Não acho que seja um fenômeno interessante e muito crucial. Só mostra que o terror é a força dos mais fracos. Não podemos combatê-los, porque eles respondem com terror. E penso que o Estado Islâmico é um fenômeno muito misterioso. Ele tem hoje 10, 20 mil militantes na Síria e cinco potências tentando destruí-lo. Isso poderia ser feito em semanas. Acho que o que realmente está acontecendo é que o novo grande poder está lutando contra seu próprio status, através do EI. Por exemplo, sunitas contra xiitas; Europa Ocidental e Rússia. Há outros conflitos por trás disso. Eu rejeito esse pensamento de que agora temos uma grande ameaça.


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