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Herança maldita: os filhos dos capacetes azuis

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BANGUI, República Centro-Africana – A vizinhança é uma colcha de retalhos de prédios arruinados e saqueados no auge da guerra civil, um lugar que a Organização das Nações Unidas deveria ajudar a reerguer. Mas em várias casas, mulheres e meninas criam bebês que alegam ter tido depois de sofrer abusos de soldados das tropas da ONU. As Nações Unidas os chamam de “filhos das forças de paz”.

— Foi horrível — diz uma jovem de 14 anos, descrevendo como um soldado do Burundi a arrastou para seu quartel e a estuprou, deixando-a grávida de um menino que ela agora embala com desconforto.

As alegações surgem em meio a um dos maiores escândalos envolvendo a ONU nos últimos anos. Desde que as missões de paz começaram na República Centro-Africana, em 2014, seus funcionários foram acusados de abuso ou exploração sexual de 42 civis, a maioria meninas menores de idade.

ONU não investiga acusações

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, disse que o abuso sexual cometido por forças de paz é “um câncer em nosso sistema”. Em agosto, o mais alto funcionário da ONU na República Centro-Africana foi exonerado por não tomar atitudes suficientes contra os casos de abuso. Quase mil funcionários das Nações Unidas ligados a abusos foram expulsos, ou serão em breve. Entre eles está todo o contingente na República Democrática do Congo.

Mas as vítimas parecem ser mais numerosas do que a ONU admitiu até agora. Em uma área da capital conhecida como Castors, perto do escritório das Nações Unidas no país, várias mulheres descreveram contatos com soldados que violam as regras da ONU contra abuso e exploração sexual.

Cinco delas disseram ter trocado sexo por comida ou dinheiro — às vezes nada mais de que US$ 4 — enquanto o país era sacudido pela guerra civil e suas famílias passavam fome. Duas haviam denunciado os casos para a ONU. Cinco de sete entrevistadas disseram ter ficado grávidas depois de abusos cometidos por soldados. A mãe de 14 anos disse ter sido estuprada, mas as Nações Unidas registraram seu caso como “transação sexual”, termo que significa uma relação em troca de dinheiro ou comida.

— Às vezes, quando estou sozinha com meu filho, penso em matá-lo — disse a adolescente, segurando o bebê. — Ele me lembra do homem que me estuprou.

Os relatos das mulheres e meninas não puderam ser verificados. Mas as histórias delas ecoam outros relatos de abusos na República Centro-Africana reunidos por grupos independentes e pela ONU.

O sistema das Nações Unidas para registrar e processar esse tipo de caso tem sido acusado de ser disfuncional, mesmo depois de escândalos envolvendo forças de paz em outras partes do mundo. Apenas uma acusação criminal foi apresentada em relação a qualquer um dos 42 casos de abuso sexual ou de exploração registrados oficialmente na República Centro-Africana, de acordo com funcionários da ONU.

A organização receberam um relatório sobre as alegações da mãe de 14 anos, e o porta-voz Ismini Palla disse que o caso “está sendo monitorado de perto”. Mas, nove meses depois da denúncia de estupro, investigadores ainda não apresentaram qualquer resultado.

O escândalo de abuso sexual é o desenvolvimento terrível mais recente em uma guerra marcada pela brutalidade extrema. O conflito começou em 2013, quando rebeldes muçulmanos derrubaram o governo do país de maioria cristã, desencadeando um ciclo de assassinatos por vingança que, em Bangui, seguiu divisões religiosas locais. Cerca de 6 mil pessoas foram mortas. A missão da ONU, que inclui tropas de 46 países e é conhecida como Minusca, foi estabelecida para dar segurança ao país e proteger os civis.

‘Eles prometeram nos ajudar’

Talvez nenhuma outra missão da ONU na história recente tenha sido tão manchada por acusações desse tipo como a da República Centro-Africana. A maior parte dos supostos casos aconteceu no auge do conflito, em 2014 e 2015, quando os combates levaram os habitantes ao limite da sobrevivência.

— Não havia como conseguir comida nem dinheiro na época, e eles prometeram nos ajudar se dormíssemos com eles — diz Rosine Mengue, que afirma ter recebido o equivalente a US$ 4 em cada um dos dois encontros que teve com um soldado das forças de paz.

Ela tinha 16 anos na época e gastou o dinheiro em folhas de mandioca, que alimentaram sua família por dois dias. Assim como as outras mulheres, Mengue não teve mais notícias do homem depois de engravidar. Ele foi para o Marrocos. Ela abandonou a escola e está criando o filho na casa dos pais.

Oficiais da ONU reconheceram que lidam com uma disfunção séria em suas forças de paz. Neste mês, eles disseram estar investigando casos de quatro meninas supostamente exploradas ou abusadas em um acampamento para refugiados internos na cidade de Ouaka. Em janeiro, disseram que ao menos quatro soldados haviam supostamente pago até 50 centavos de dólar por sexo em um acampamento em Bangui.

— Vamos ser inundados por processos sobre paternidade — diz Parfait Onanga-Anyanga, o recém-nomeado chefe da missão da ONU na República Centro-Africana.


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