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Brexit expõe rejeição a conceito de bloco como substituto à identidade nacional

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BERLIM — Após a vitória do Brexit, filósofos e cientistas políticos veem o futuro da Europa com pessimismo. Para eles, a tentativa de construção de uma identidade europeia fracassou diante de uma nova onda de nacionalismo: há uma volta ao conceito de nação, marcada pela forte rejeição à ideia de bloco como substituição para a identidade nacional. Os analistas, porém, se dividem se nesse novo cenário europeu existe ou não um risco real de ameaça à democracia.

Para o historiador Herfried Münkler, da Universidade Humboldt, de Berlim, o maior projeto do continente depois da Segunda Guerra, idealizado para aproximar nações historicamente inimigas, não deu certo porque a integração econômica e política da União Europeia (UE) “foi na verdade um projeto de elite”, realizado sem consulta às populações dos respectivos países.

— O projeto funcionou relativamente bem enquanto a UE significava cada vez mais a melhoria do padrão de vida. Com o surgimento de problemas, como o desafio representado pelo ingresso dos países pobres do Leste, a crise do euro e a crise dos refugiados, o grau de aceitação foi diminuindo — disse Münkler.

O filósofo Otfried Höffe, da Universidade de Tübingen, no entanto, acredita que o “projeto de criação dos Estados Unidos da Europa”, como queriam os idealizadores do bloco, nunca teve uma chance de dar certo: nações são construções formadas historicamente que dão aos seus habitantes identidade e a sensação de fazer parte, o que nunca foi o caso da UE, ressaltou.

REAÇÃO À GLOBALIZAÇÃO

Com a globalização e a reação a ela, como num processo chamado na filosofia de dialética, explica, o conceito de nação e Estado nacional, que parecia ter sido superado no final do século XX, voltou a ser a base da identidade dos povos europeus.

— A UE só tem chance de sobreviver se abandonar o centralismo e passar a respeitar mais a identidade dos países-membros. Trata-se de uma riqueza cultural enorme à qual os europeus não querem renunciar — comentou.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Bonn parece reforçar a tese de Höffe. Segundo o estudo, quando o aspecto da identidade nacional é ignorado, as pessoas correm o risco de adotar um nacionalismo agressivo e comportamento xenófobo.

Em toda a Europa, os partidos que têm o conceito mais tradicional de nação estão crescendo, contribuindo ainda mais para a perda de imagem da UE, que virou uma espécie de bode expiatório dos governos populistas de direita e de esquerda.

Höffe afirma que, depois da globalização e das frequentes crises no continente, a volta da identidade nacional foi descoberta como um porto seguro que ajuda a enfrentar os novos desafios do mundo de hoje.

— Eu sou um cidadão de Tübingen, do estado de Baden Württemberg, da Alemanha. Nós compramos os nossos brinquedos da China, vendemos os nossos carros para os Estados Unidos e as nossas máquinas para o mundo todo — observa o filósofo. — Assim como eu, pensam outros europeus, que mesmo não sendo nacionalistas querem que a UE dê mais espaço para o (aspecto) nacional, em vez de ser o monstro burocrático que perde tempo até na definição de como deve ser a forma de uma banana ou de um pepino. De outra forma, há risco de o pior, da ascensão de partidos nacionalistas, acontecer.

Mas a volta ao conceito de nação não deve significar o risco da repetição de conflitos do século XX realizados em nome do patriotismo. Otfried Höffe acrescenta que o componente que mais contribuiu para a tragédia causada pelo nacionalismo das décadas de 1920 e 1930, o ódio entre as nações e entre os partidos extremistas, entre nazistas e comunistas, não existe hoje.

— Hoje há, no máximo, a competição entre as nações. O perigo de conflito existe apenas quando há regiões separatistas, como as guerras da Iugoslávia nos anos 1990. Motivo de preocupação é a disposição para a violência de militantes da direita e da esquerda — diz o filósofo de Tübingen.

Não só no Reino Unido houve manifestações de xenofobia de direita, como os insultos a estrangeiros após o Brexit. Na Alemanha, os extremistas incendeiam frequentemente abrigos de refugiados. A polícia registrou também, desde o final do ano passado, centenas de casos de agressão física contra imigrantes. Já a extrema-esquerda alemã se concentra no incêndio e destruição de carros estacionados nas ruas.

Para Höffe, autor de uma importante obra sobre a filosofia política de Immanuel Kant, a UE vai certamente sobreviver, mas corre o risco de perder vários dos seus membros num período de curto a médio prazo.

Na sua opinião, o projeto da União Europeia tem um grau de aceitação tão baixo que em muitos países não teria chances de sobreviver a um referendo, que é o modelo mais direto de democracia.

Enquanto nos países do Norte da Europa a crise dos refugiados é vista como a mais grave enfrentada pelo bloco, levando os eleitores para a extrema-direita, no Sul é a crise do euro, ainda não superada, que desperta a fúria coletiva contra Bruxelas, fortalecendo partidos como o Syriza, que governa a Grécia, ou o Podemos, terceira força no Parlamento espanhol.

Os governos populistas, de direita, como o de Viktor Orban, na Hungria, ou de esquerda, como o Syriza, passaram a usar essa imagem profundamente negativa como um instrumento de pressão. Quando negociam com Bruxelas e querem obter mais benefícios, esses países costumam ameaçar com uma proposta de referendo, uma palavra mágica, pois a Comissão Europeia sabe que é cada vez maior o número de pessoas que seriam favoráveis à saída em quase todos os membros do bloco — mesmo nos países do Leste, que ainda em 2004 viam o ingresso na instituição como uma data tão importante quanto o fim do comunismo, ressaltam especialistas.

O descontentamento geral é ainda mais complexo. Como lembra o cientista político americano Irving Collier, do Instituto John F. Kennedy da Universidade Livre de Berlim, o fenômeno ocorre também do outro lado do Atlântico, onde uma onda de insatisfação popular, registrada sobretudo entre os perdedores do modelo econômico, deu força a populistas como o virtual candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump.

— Há, de um lado, a volta do nacionalismo na Europa, mas há também um clima de insatisfação popular dos indignados no mundo inteiro. Enquanto na Europa o alvo da aversão é Bruxelas, nos Estados Unidos a insatisfação se volta contra Washington — diz Collier, que compara Trump à francesa Marine Le Pen, da Frente Nacional, ou ao líder populista austríaco Heinz Christian Strache, do Partido da Liberdade.

Collier lembra que há em todos esses países a ânsia popular por uma liderança forte e a disposição até em aceitar um novo modelo autoritário, chamado de “democracia não liberal”, como a democracia dirigida do presidente da Rússia, Vladimir Putin, de Viktor Orban na Hungria, ou do partido PiS (Paz e Justiça) na Polônia. Já Münkler não vê uma ameaça à democracia.

— Nada é mais democrático do que um referendo. Se há uma ameaça de crise, esta é na democracia parlamentar — diz Münkler, ao comentar o Brexit.


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