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‘Vivemos em um ambiente polarizado’, diz coordenador da Lava-Jato

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SÃO PAULO – Para o coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol, o país vive um momento maniqueísta, com polarização política dividindo a sociedade entre “nós e eles”. Procurador da República desde 2002, aos 36 anos ele comanda a equipe responsável pela maior investigação de combate à corrupção na História do Brasil.

Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o procurador afirma que o foro privilegiado fere a igualdade e “dificulta ou impede a investigação dos que mais deviam zelar pelo bem da sociedade”.

Depois da operação contra o ex-presidente Lula, a Lava-Jato passou a enfrentar pela primeira vez resistência significativa de uma parcela da sociedade. Como vocês avaliam este momento?

Vivemos em um ambiente polarizado politicamente, o que se soma a uma tendência humana maniqueísta de dividir pessoas entre “bons e maus”, “nós e eles”. Entretanto, com o avanço das investigações e o conhecimento das provas, acreditamos que a sociedade como um todo perceberá que houve crimes gravíssimos e que estes devem ser punidos segundo as regras da lei em uma sociedade realmente republicana e democrática. É natural enfrentar as resistências ao longo das apurações. Grande parte dos investigados que resistiram e juraram inocência, no início da investigação, hoje reconhecem os crimes e colaboram com a Justiça. Investigados têm um instinto natural de autoproteção. Nosso único compromisso é com o interesse público e o único propósito é produzir justiça. Aliás, para garantir a transparência desse caso tão sensível, a fim de que a sociedade tenha amplo acesso às informações, evitando o desvirtuamento de fatos, criamos o primeiro site de um caso criminal no Brasil, que já conta com mais de um milhão de acessos e onde todo cidadão pode conferir as acusações e suas provas.

O fim do foro privilegiado seria essencial neste momento?

A redução do foro privilegiado, independente do momento, é um imperativo republicano para o qual precisamos avançar. O julgamento dos que ocupam os cargos mais relevantes da República em um tribunal superior tem por propósito garantir a estabilidade das instituições, e só se justifica nessa medida. Além disso, os tribunais não têm perfil institucional e estrutura para investigar e julgar crimes de modo célere. Assim, a proliferação do foro especial, sem justificativa, além de ferir a igualdade, dificulta ou impede a investigação por corrupção daqueles que mais deviam zelar pelo bem da sociedade e a traem, roubando o povo.

Uma crítica à força-tarefa é a falta de investigação em gestões anteriores.

Essa crítica não tem o menor sentido para quem tem um mínimo de conhecimento jurídico. Não é viável investigar fatos tão antigos por duas razões. Em primeiro lugar, fatos praticados há mais de doze anos estão, na prática, prescritos, ou seja, é como se o crime fosse cancelado pelo decurso do tempo. Nosso sistema tem muitas brechas que devem ser fechadas, uma das quais é um sistema de prescrição leniente. Em segundo lugar, a investigação de fatos tão antigos não tem viabilidade prática, porque a guarda de documentos fiscais ou bancários não alcança tanto tempo. A lei exige que dados fiscais, por exemplo, sejam guardados só por cinco anos, o que libera as empresas de guardarem os documentos que embasam os lançamentos e colocaria empecilhos significativos à investigação. Dentro de um contexto de recursos humanos e financeiros limitados do Estado, devemos orientar os esforços investigativos sobre fatos que tragam um resultado útil para a sociedade. Além disso, a crítica não tem o menor sentido quando observamos o objeto das investigações e como funciona o sistema de nomeações de cargos federais. Os postos de direção de órgãos e estatais são entregues a pessoas indicadas pelo partido do governo ou a aliados, e não à oposição. Por isso, nos últimos 13 anos, a Petrobras, assim como as demais estruturas federais, esteve sob o comando dos partidos que dão sustentação ao governo e, havendo corrupção, é natural que esteja ligada a essas agremiações. Surgindo qualquer linha investigativa de que esse mesmo esquema investigado também beneficiou outros partidos, evidentemente, isso será objeto de investigação com igual rigor.

A Operação Lava-Jato completou dois anos. Qual é o balanço da operação?

A Lava-Jato comprovou um esquema bilionário de corrupção desenvolvido por príncipes do empreendedorismo e da política, os quais estão sendo levados a um julgamento justo perante nossos tribunais. Por meio do emprego de estratégias de investigação que incluem a colaboração premiada, cooperações internacionais, buscas e apreensões e a análise de big data, foram reunidas provas consistentes que embasaram acusações contra 179 pessoas por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, incluindo empresários, políticos, funcionários públicos e lavadores de dinheiro. Os prejuízos descobertos são estimados em até R$ 29 bilhões pelo Tribunal de Contas da União, e em até R$ 42 bilhões pela Polícia Federal. Já foram propostas ações para cobrar R$ 22 bilhões e já foram recuperados aos cofres públicos R$ 3 bilhões. Para se ter um parâmetro, o caso anterior que mais recuperou, de meu conhecimento, não atingiu R$ 70 milhões. Na linha do mensalão, avançou-se para romper um paradigma de impunidade, mas a vitória não virá se não avançarmos com a mudança das condições que, hoje, favorecem, e muito, a corrupção no Brasil.

Para onde a Lava-Jato vai?

Há muito por fazer. Já acusamos criminalmente cerca de um terço dos esquemas dentro da Petrobras, sem considerar outras áreas ainda totalmente inexploradas. Novas colaborações e contas encaminhadas por autoridades estrangeiras poderão revelar um sem-número de novos crimes. Isso tudo torna improvável colocar um ponto final na Lava Jato dentro de um horizonte próximo de tempo. Mais importante, entretanto, do que a descoberta e comprovação de novos fatos, é a mudança das condições que favorecem a corrupção. A corrupção é um mal histórico, sistemático e apartidário de que padece nosso país. Já sabíamos disso antes da Lava Jato, mas ela colocou esse monstro assustador, em carne e osso, em nossa frente. Ela tornou palpável que a corrupção desvia bilhões que afetam nossa vida, retirando do cidadão brasileiro o hospital, o remédio, a escola, o ensino de qualidade e a segurança a que ele tem direito. Gerou uma consciência a respeito da gravidade desse câncer que suga energias e recursos que poderiam minorar outros problemas sociais, abrindo uma oportunidade histórica para mudanças. Cabe a todos nós, contudo, aproveitar essa oportunidade. As dez medidas contra a corrupção, que serão levadas ao Congresso Nacional no próximo dia 29 para se tornarem um projeto de iniciativa popular, após receberam apoio por meio de mais de 2 milhões de assinaturas, constituem um importante passo nessa direção.

Como as dez medidas podem ajudar neste momento?

A Lava-Jato atua como um antibiótico sobre um foco de infecção, mas é preciso tratar a fonte desta e de outras infecções. Enquanto não atuarmos sobre as condições que favorecem a corrupção no país, continuaremos a sofrer com sucessivos escândalos de corrupção. Para mudar tais condições, com base em estudos e em experiências nacionais e internacionais sobre esse problema, bem como em recomendações da Organização das Nações Unidas, foram desenvolvidas dez medidas que possam nos trazer um país melhor, com menos corrupção e impunidade. Elas são propostas de alteração legislativa com três focos: prevenir a corrupção, isto é, evitar que aconteça; propiciar uma pena para a corrupção que seja proporcional ao mal que ela causa e garantir que essa pena saia do papel, dando um basta nas brechas da lei que geram impunidade; por fim, criar instrumentos que permitam a recuperação satisfatória do dinheiro desviado dos cofres públicos. A Lava-Jato nos traz um suspiro de esperança e de crença no funcionamento de nossas instituições, mas isso tudo passará se não aproveitarmos esse momento para consolidar mudanças que garantam a Justiça neste e em outros casos.

Há uma corrente que diz que a proposta das dez medidas é um retrocesso, que cria um estado policialesco. Como o senhor vê essas críticas?

Mais de 900 entidades endossaram formalmente as dez medidas, incluindo organizações de renome e isentas como a Associação dos Juízes Federais e a Transparência Internacional. Esta última, fundada na Alemanha na década de 90, é uma das entidades mais reconhecidas internacionalmente no combate à corrupção. Parte das medidas, como testes de integridade, a criminalização do enriquecimento ilícito e ações para recuperar o dinheiro desviado, é recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Praticamente todas são aplicadas em países com democracia consolidada. As discordâncias quanto a algumas das medidas estão concentradas em uma parcela de criminalistas acostumados com o sistema de justiça disfuncional que vivenciamos e defensores de teses chamadas hipergarantistas, as quais acabam superdimensionando os direitos do réu e desprotegendo os direitos da sociedade que foram violados pelos crimes. É preciso proteger integralmente os direitos do réu segundo parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos, mas no Brasil as proteções internacionais são superdimensionadas, conduzindo à defesa, por exemplo, uma possibilidade de recorrer praticamente infinita, a qual acaba garantindo invariavelmente a impunidade dos réus de colarinho branco.

Quanto às mudanças que a Lava-Jato conquistou, temos o fim do financiamento e a mudança do entendimento do STF. São suficientes?

É possível que a Lava-Jato tenha fornecido informações que contribuíram para essas decisões da Suprema Corte, mas certamente houve diversas outras condições que conduziram a tais resultados. O fim do financiamento empresarial é bom, mas não é suficiente enquanto não deixarem de existir as pressões derivadas de corridas eleitorais caríssimas e enquanto houver um número de candidatos tão elevado que dificulta qualquer fiscalização efetiva. Temos ainda um fenômeno de proliferação desmedida de partidos políticos, muitos dos quais criados apenas para abocanhar tempo de TV e o fundo partidário. Há propostas de reforma política que alteram essa realidade, como a da reforma política democrática, em que está engajado o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que protagonizou a Ficha Limpa. Precisamos de reformas porque a corrupção sistemática dos agentes e partidos políticos adoece a democracia. Na democracia, o governo deveria se orientar ao bem do povo e não para o bem de interesses particulares, ainda que partidários. Quanto ao seu outro exemplo, a recente mudança do entendimento do Supremo, autorizando a prisão após decisão de segunda instância, reinsere o país no contexto internacional das nações democráticas, em que prisões são executadas após a decisão do juiz ou do tribunal de apelação, e não após quatro instâncias de decisão como era no Brasil. Contudo, ainda há muitas brechas abertas, como o infinito número de recursos, um sistema prescricional que proporciona a impunidade e penas de corrupção que fazem o crime compensar.

Em que momento das investigações, vocês perceberam que não se tratava apenas de esquema de corrupção na Petrobras, mas de se tratar de organização criminosa montada para financiar um projeto político-partidário de poder, como constantemente vocês defendem?

As investigações passaram por três etapas. Num primeiro momento, a Lava Jato investigou quatro organizações criminosas chefiadas por doleiros, um dos quais era Alberto Youssef. Nada se sabia da Petrobras. A partir de um e-mail a uma concessionária de automóveis, em que Youssef adquiria por meio de interpostas pessoas uma Land Rover para Paulo Roberto Costa, chegou-se ao início de uma segunda etapa em que se descobriu corrupção em larga escala envolvendo contratos da Petrobras. A segunda etapa deslanchou a partir da colaboração de Paulo Roberto Costa e seu foco foi o esquema bilionário que vitimizou a Petrobras. Demonstrou-se que empreiteiros se cartelizaram e corromperam funcionários do alto escalão da estatal, em troca de benefícios econômicos para as empresas. As propinas eram pagas por meio de lavadores de dinheiro profissional, os quais distribuíam o dinheiro entre os funcionários da Petrobras, partidos e agentes políticos que haviam indicado e davam sustentação para os diretores da estatal. Numa terceira etapa, em que estamos, descobriu-se que a corrupção não se restringiu à Petrobras, mas se incrustou também em outros entes ou órgãos públicos federais, como a Eletronuclear, o Ministério do Planejamento e a Caixa Econômica Federal. Juntando-se as peças desse gigantesco quebra-cabeças, construído sobre robustas provas, o que se observa é que partidos políticos indicaram pessoas para cargos de direção de órgãos públicos para que os nomeados usassem seu poder para obter propina de empresas com interesse nas decisões dos órgãos. A propina se destinava a enriquecer os funcionários públicos, partidos e políticos envolvidos e para financiar campanhas eleitorais.


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