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Freio na inovação: pesquisa perde fôlego no Brasil

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RIO – A comunidade científica vê o Brasil correr em ritmo olímpico na contramão do mundo desenvolvido. Conquistas alcançadas desde o início dos anos 2000 evaporam com sucessivas reduções de orçamento e barganhas políticas. Conquistas que permitiram, por exemplo, a identificação da microcefalia associada ao zika e revelaram os efeitos do vírus no cérebro. Enquanto países como a China apostam no investimento em ciência e inovação para sair da crise e retomar o crescimento, o Brasil faz o oposto, alertam entidades como a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

— Nem nos piores pesadelos pensamos chegar a esse ponto. Não reconhecer que a ciência é o motor do futuro demonstra descaso com a sociedade, um analfabetismo científico que custará caro à nação — afirma o presidente da Academia Brasileira de Ciências, o físico Luiz Davidovich.

Ele destaca que, em março, o premier da China, Li Keqiang, anunciou que o crescimento chinês iria desacelerar. Para fazer frente à crise, até 2020 o país destinará 2,5% do PIB para ciência e tecnologia. Hoje, emprega 2,05%. Nos EUA, são 2,8% do PIB. Os países da União Europeia se comprometeram este ano com 3% até 2020. Coreia do Sul e Israel superam os 4%.

— No Brasil, onde o percentual é de 1,5%, a única palavra que se usa ao falar de ciência é corte. É o mesmo que cortar o amanhã — lamenta Davidovich.

Manifesto contra a fusão

Abril começou com suspensões de bolsas. Maio, com o uso do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) como moeda de barganha política, num mercado em que a indicação de um pastor criacionista, que nega alguns dos princípios mais básicos do conhecimento, pareceu razoável. O mês nem chegou à metade e veio o anúncio da fusão do ministério com as Comunicações no governo Temer.

— É uma diminuição da ciência. É claramente necessário reduzir ministérios. Mas isso precisa ser feito com sabedoria — afirma o presidente da ABC.

A fusão do então MCT com o ministério da Indústria e Comércio foi experimentada sem êxitos em 1989, no governo de José Sarney.

Helena Nader, presidente da SBPC, se preocupa com o impacto no desenvolvimento do país. Ontem, a SBPC, a ABC e outras 11 entidades lançaram um manifesto contra a fusão ministerial.

— Tenho dó das gerações futuras. Nenhum político tem o direito de comprometer o futuro dos jovens. E nem o do país — afirma Helena. — O futuro é pequeno para as nações dependentes de commodities. E é isso o que somos. E ainda assim, de commodities fruto da tecnologia. Senão, nem isso. E vamos continuar a encolher, se não preservarmos os avanços que conquistamos. Não há futuro sem ciência.

A presidente da SBPC não esconde o cansaço. Uma crise sem fim à vista. Visíveis só perdas de avanços conquistados no início da década.

— O que acontece quando uma economia depende de commodities? Veja o Rio de Janeiro, falido com a baixa do preço do petróleo. Commodities flutuam. A economia é que precisa ser sólida. Ter base numa indústria inovadora. O Brasil tem feito escolhas no sentido contrário — lamenta ela.

Luiz Davidovich enxerga no corte de bolsas um símbolo sombrio e trágico da crise política e econômica:

— Bolsas são o combustível da ciência, permitem que os jovens cientistas trabalhem. São eles que movem as pesquisas. Esses cortes são um símbolo da destruição da ciência. Você mata o cientista de amanhã. Quem vai combater novos vírus? Quem trará inovação? Esqueceram ou nunca souberam que a ciência é um pilar estratégico do desenvolvimento — salienta Davidovich.

Ele teme que cada vez menos jovens ingressem na carreira de cientista.

— Quando você transforma uma área tão estratégica quanto a ciência em moeda de troca e elimina bolsas e investimentos, não repassa recursos, transmite a mensagem de que é uma péssima ideia dedicar a carreira à pesquisa e à inovação. É o mesmo que dizer que não é do interesse do Brasil. O corte de bolsas é simbólico e vergonhoso. Ciência é planejamento, é um processo contínuo. De 2000 a 2010 tivemos um período de investimento em pesquisa e inovação. Depois, começaram a acontecer perdas, que se agravaram muito desde o fim de 2015 — observa Helena Nader.

O professor titular de neurologia da UFRJ Roberto Lent deixa claro o descontentamento.

— Retrocessos em ciência e tecnologia levam décadas para serem recuperados. Ciência é uma área central. Não é periférica, como desinformados podem supor.

EM PONTOS:

Agronegócio. A soja brasileira é quatro vezes mais produtiva hoje. Avanços assim são resultado do trabalho da Embrapa. E esta tem suas origens em instituições tão antigas quanto Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), fundada em 1901, e o Instituto Agronômico de Campinas, de 1887.

Petróleo. A tecnologia de exploração em águas profundas desenvolvida pela Petrobras ao longo de décadas é resultado, por sua vez, de estudos de universidades brasileiras em engenharia química e mecânica, física e matemática.

Concreto armado. O Brasil foi construído em concreto graças a pesquisas desenvolvidas na antiga Escola Politécnica de São Paulo, fundada em 1899, e hoje incorporada à USP, diz Luiz Davidovich.

Aviação. As tecnologias criadas pela Embraer e que lhe garantiram uma fatia no mercado internacional de aeronaves derivam, em boa parte, de estudos do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Matemática. A excelência brasileira reconhecida quando Artur Ávila ganhou a Medalha Fields, o Nobel da área, em 2014, é produto dos estudos do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa).

Engenharia. A Embraco é a maior fabricante de compressores do mundo. Foi vendida à Whirlpool, mas suas origens estão na engenharia mecânica da Universidade Federal de Santa Catarina.


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