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Artigo: A mesa e suas cartas, por Tarso Genro

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Quando a crise política contamina a economia e as mediações institucionais são insuficientes para resolvê-la, o que a sucede a História já registrou: a instauração de um “estado da natureza”, no qual a dialética “amigo x inimigo” impera até a destruição de uma das partes; uma lenta decadência da política, que enoja a sociedade, até ela mesma pedir soluções autoritárias; uma conciliação para salvar aparências, mudando “para que tudo continue o mesmo”; ou a gestação de um novo “consenso”, em torno de valores que recarreguem de energia cívica a democracia política.

No mínimo é necessário testar a sinceridade da proposta de diálogo feita pelo ex-presidente Fernando Henrique, no seu artigo recente “Cartas na mesa”. Nos que exercemos altas funções políticas — nos últimos 30 anos — devemos contribuir com o debate, neste grave momento de indeterminação política. Deformações graves da ordem jurídica estão em curso e delas não se sairá pelos meios legais “ordinários”, o que implica buscar a saída pelos meios legais “extraordinários”. Caso contrário, o que teremos é uma radicalização que só tende a reproduzir violência e ilegalidade. E o extraordinário é a “concertação”, num país em que sempre predominou ou a conciliação sem princípios ou a guerra política de extermínio.

A petição do ex-presidente, de que “não se trata só da Dilma ou do PT (…), mas do que idealizamos na Constituição de 88” (…), que “é construir uma democracia plena e um país decente”, deve ser testada para verificarmos se é possível recuperar o império da política numa democracia sólida. A midiatização do processo penal, a criação de um estatuto ilegal e ilegítimo de “reféns do estado de direito” (para a delação premiada), os vazamentos seletivos de informações, o uso de métodos de exceção para perseguir lideranças de uma das facções em disputa, envenena e divide o país. Isto deve ser superado.

Ao defender que não sairemos da “encalacrada” sem “uma mudança nas regras do jogo”, o ex-presidente sugere algumas reformas. Algumas típicas da suas posições históricas, outras que poderiam ser negociadas para serem implementadas com certa rapidez. Outras ainda, mais complexas, como a instituição de um semiparlamentarismo, é bom regime de governo que requereria uma reforma política mais profunda, que fortalecesse os partidos e saneasse o ambiente eleitoral dos financiamentos ilegais.

Que a base petista-lulista e de esquerda, no país, não vai capitular já está claro. São dezenas de milhões de brasileiros. Sua unidade fundamental, é que o governo Dilma tenha assegurado seu direito de governar até o último dia do seu mandato com um mínimo de serenidade, o que até agora não lhe foi conferido pela oposição.

No contexto atual, a diferença entre uma “conciliação” sem princípios e um processo de “concertação” é que, na primeira, as partes ajustam cláusulas que resguardam os contratantes diretos, sem levar em consideração os efeitos do acordo na base social que representam. Na “concertação”, ficam ajustadas vantagens e renúncias, mas a agenda inteira — de cada parte — pode ser retomada pela via democrática, restabelecida na sua plenitude. Desta forma, a integralidade do cumprimento do mandato pela presidenta seria o ponto de partida de qualquer processo de estabilização democrática do país.

Um segundo ponto que deveria informar esta concertação seria o reconhecimento — já apontado por vários juristas — de que a Operação Lava-Jato se tornou um instrumento político inquisitório, que opera à margem da legalidade. Através deste reconhecimento político não se oporia “imunidades” nas investigações, mas a defesa unitária de que os procedimentos de exceção devem acabar, pois já estão promovendo a dissolução dos princípios da presunção da inocência e do direito à ampla defesa.

Aceitas estas duas preliminares de defesa da ordem democrática, poderiam vir à tela quatro dos temas, levantados pelo ex-presidente:

1- Alterar por consenso as regras de financiamento eleitoral, com um prazo experimental acordado; 2- Compatibilizar o gasto público com o crescimento do PIB, com uma transição que não prejudique a retomada do crescimento, combinando-a com a aprovação da CPMF por um prazo emergencial; 3- Uma reforma política — para ter efeito nas eleições de 2018 — que reduza o número de partidos e facilite a formação de frentes eleitorais, com vinculação vertical e permissão de um número mínimo de candidatos não filiados, em cada sigla; 4- Reforma emergencial do ICMS, para ajudar o refinanciamento dos estados, combinando-a com a restruturação das suas dívidas.

Seria possível que os principais partidos da oposição e do governo se dispusessem a conversar sobre esta agenda inicial? É difícil, mas não impossível. Tal diálogo poderia abrir a possibilidade para a convocação de uma Constituinte, para tratar de assuntos cuja legitimidade só poderia vir do poder constituinte do povo. Não quero dizer que é isso ou o caos. Mas, certamente, todos os cidadãos sensatos do país preferem uma saída negociada, para fortalecer a democracia, a uma guerra que fortaleça o arbítrio.

Tarso Genro é ex-governador do RS e ex-ministro.


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